Homenageando Paulo Leminski, Flip aposta na força da poesia em 2025
Festa Literária Internacional de Paraty reúne nomes como a ministra Marina Silva, o cantor Arnaldo Antunes, o humorista Gregorio Duvivier e o escritor Nei Lopes

Quando foi lançada, em 2013, a coletânea Toda Poesia, de Paulo Leminski (1944-1989), um calhamaço de 424 páginas de capa laranja, logo estourou, desbancando o best-seller Cinquenta Tons de Cinza, da britânica E.L. James, do topo da lista de mais vendidos no Brasil. Desde então, foram cerca de 200 000 exemplares arrematados, um fenômeno. Não por acaso, o autor que tantos versos levou às estantes dos brasileiros foi escolhido como o homenageado da 23ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), entre 30 de julho e 3 de agosto — finalmente de volta ao período habitual, resgatando a tradição pré-pandemia.
Convidada do evento, a poeta e letrista Alice Ruiz, ex-companheira do autor curitibano, defende que o sucesso dele vem do fato de sua obra ser compreensível, acessível e sobretudo atemporal. “Essa é uma característica marcante da poesia da nossa geração, especialmente a poesia marginal. E ele era particularmente bom nisso”, comenta Alice, que participa da mesa Vide o Verso, em 1º de agosto, às 10h, ao lado de Claudia Roquette-Pinto e Marília Garcia.
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Realizar o evento literário é um desafio de maior calibre nos dias de hoje. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro, a maioria dos brasileiros não lê. E isso abrange de tudo — ficção, obras didáticas ou religiosas. Nada tem atraído atenção. Outro dado revela que 84% não compraram um único livro ao longo de doze meses. A lista da PublishNews dos mais vendidos em 2024 ajuda a dar contornos ao preocupante cenário: apenas quatro títulos ali são de literatura — os demais pertencem ao rol dos sacros e da autoajuda, e aparece ainda um livro de figurinhas do youtuber Enaldinho.
Falando de poesia, de acordo com a Nielsen BookData foram vendidos, no ano passado, 446 000 exemplares do gênero — não mais do que 1% do faturamento do setor. A região metropolitana do Rio lidera a aquisição de publicações do segmento. Curadora da Flip, Ana Lima Cecilio afirma que a opção por um artista tão pop quanto Leminski foi uma espécie de resposta a esse quadro de moldura pessimista, a despeito de se tratar de um evento sem amarras. “É diferente de uma feira, porque privilegiamos encontros, conversas e celebrações”, explica.

A força da poesia é, sim, um motor para atrair os frequentadores — afinal, realizar a Flip é, de certa forma, “pregar para convertidos”. São esperadas cerca de 30 000 pessoas, como no ano passado. Nesta edição, a presença de poetas está mais forte no programa principal, composto por 21 mesas literárias com autores nacionais e internacionais. Os ingressos do auditório estão praticamente esgotados, mas as discussões serão transmitidas ao vivo em um telão na praça, pelo site e pelo YouTube da Flip, além do canal Arte1.
Embora o apelo comercial não seja o principal norte da programação, há nomes populares escalados, a exemplo do músico Arnaldo Antunes — que abre a festa, nesta quarta (30) — do ator Gregorio Duvivier e do poeta e agitador cultural Sérgio Vaz, com uma obra bastante difundida on-line. “A escolha do Leminski reverbera entre um público amplo, mas a gente percebe um interesse crescente pela poesia”, afirma Rita Mattar, editora da Fósforo e integrante da diretoria do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel). “Sinto mais interesse da imprensa e do mercado também”, acrescenta.
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Um termômetro mais recente para medir a popularidade desse gênero literário está nas redes sociais. Nomes como Zack Magiezi, João Doederlein, Ryane Leão, Lucão, Pedro Gabriel e Clarice Freire são autores que despontaram no Instagram. Também existem perfis dedicados a postar versos com potencial de viralização. “As redes recuperaram o status da poesia. Especialmente a poesia curta, perfeita para o universo digital”, defende Alice Ruiz.
O interesse por essa forma de expressão poderá ser medido em tempo real nas cinco mesas da programação principal e no novo palco da Flip, Caprichos & Relaxos, batizado a partir de um dos mais famosos livros do homenageado, na Praça Aberta. O espaço receberá quinze poetas brasileiros, e cada um terá vinte minutos para realizar uma apresentação com leitura e performances. Estrela Leminski, filha de Paulo e Alice, é uma das confirmadas. “É muito significativo não restringir essa atividade ao auditório. Faz parte da liberdade poética”, argumenta Ana Lima Cecilio.
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Essa mudança de cenário pode ser sentida por gerações mais novas de poetas, que vêm sendo publicadas por grandes editoras. Nomes como as cariocas Bruna Mitrano e Alice Sant’Anna passaram pela Flip. Já Marília Garcia e a fluminense Bruna Beber têm presença garantida em Paraty em 2025. Ana Lima Cecilio cita a editora carioca 7Letras e o poeta Carlito Azevedo — que acaba de retomar a emblemática revista Inimigo Rumor — como responsáveis por um caldeirão de poetas, sobretudo mulheres. Eventos como o CEP 20 000, encontro criado em 1990 por Chacal, também contribuíram para a efervescência da cena.
Hoje, o universo dos versos brasileiros conta com uma pluralidade de clubes de leitura (presenciais e on-line), encontros e slams, competições de poesia falada que se espalharam pelo país na última década. O Sarau da Cooperifa, realizado desde 2001 por Sérgio Vaz em São Paulo, é outro exemplo bem-sucedido que fomenta o surgimento de novos autores. “Ele tem essa sacada da deselitização. Segundo ele, para discutir literatura, basta um boteco e algumas cadeiras”, descreve a curadora da Flip.
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Como manda a tradição, a festança da leitura no litoral sul fluminense vai além das páginas. As três mesas de não ficção são “explicitamente políticas”. O Brasil no Espelho, com o jornalista Tiago Rogero e a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, respectivamente idealizador e consultora do podcast Projeto Querino, mediada pela escritora e ativista abolicionista penal Juliana Borges, vai abordar a questão racial. Em Breve História do Longo Conflito, o historiador israelense Ilan Pappe se debruça sobre a origem e os motivos da guerra na Palestina. Já a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, vai contar sua trajetória de luta pela preservação da floresta.
Mas conversas como Ser Mulher na América Latina, com as escritoras Dahlia de la Cerda, mexicana, e Dolores Reyes, argentina, mediadas por Gabriela Mayer, e Senhora Liberdade, reunindo Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, também são políticas. “A literatura relaciona-se com esses temas mesmo quando não parece fazê-lo”, resume o escritor e humorista português Ricardo Araújo Pereira, destaque na programação. A Flip abre portas e janelas para a construção de novas e ricas visões de mundo.
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EU INDICO
Os livros e poetas preferidos de seis escritores que estarão na Flip
Alice Ruiz

“Destaco a Wisława Szymborska, poeta polonesa, maravilhosa e original, que só teve o primeiro livro publicado no Brasil em 2011, anos depois de ganhar o Nobel de Literatura, em 1996. Quando sai novo livro dela, uma filha já providencia o presente para mim. Não tem erro”
Claudia Roquette-Pinto

“A poesia de Leminski é uma influência incontornável para a minha geração. Distraídos Venceremos, de 1987, é uma lição inesquecível de liberdade criativa. Nele, sua voz tão singular, fluida e sonora filosofa sem dó, misturando alta erudição livresca à linguagem veloz da propaganda e do pop”
Fabrício Corsaletti

“Li e reli a obra completa de Carlos Drummond de Andrade, entre os 15 e 17 anos, num exemplar emprestado por uma professora. Foi a experiência de leitura mais intensa que tive na vida e ainda me impressiona a capacidade que Drummond tem de falar sobre qualquer coisa de uma maneira profunda e verdadeira”
Gregorio Duvivier

A Educação pela Pedra, de João Cabral de Melo Neto. Não tem no livro nenhuma palavra sobrando. Tudo está onde tem que estar. João Cabral fez com o verso o que João Gilberto fez com a voz. Tirou da pedra tudo o que não era cavalo”
Nei Lopes

“Oitentáculos, publicado em 2022, quando fiz 80 anos, marca minha chegada a uma idade que jamais pensei alcançar. As eleições presidenciais se aproximavam e eu sentia muita angústia, então lancei mão de uma linguagem cifrada que me permitiu desabafar”
Sérgio Vaz

“Quando li Canto Geral, de Pablo Neruda, foi como um chamado para a poesia. O amor, a luta pela vida e pelo social era tudo que eu queria ler e escrever. O poeta chileno abriu um portal na minha cabeça e escreveu um livro no meu coração”
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Outros destaques da programação da festa literária de Paraty

Casas Parceiras
Serão 25 espaços, com atrações gratuitas. Entre os destaques, estão Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, na Casa Record; e o cantor e compositor Pedro Luís, na Casa Caixa de Histórias.
Praça Aberta
Situado na margem esquerda do Rio Perequê-Açu, o local recebe bancas de editoras independentes, coletivos editoriais e autores interessados em expor seus trabalhos. Há também gastronomia e artesanato.

Auditório do Areal
O espaço, com entrada franca, apresenta mesas de conversa sobre literatura e questões da contemporaneidade, além de leituras, performances, palestras, apresentações e lançamentos de livros de editoras e autores independentes.
Cinema da Praça
A parceria da festa com o equipamento público que fica na Praça da Matriz acontece há quatro anos. De quinta (31) a domingo (3), haverá sessões diárias e gratuitas de filmes inspirados em obras literárias ou documentários, além de bate-papos.

Palco da Praia
Com curadoria do poeta paratiense Luiz Perequê, o recinto, instalado junto à Praça Aberta, traz manifestações culturais da região da Costa Verde, a exemplo de música, arte popular e expressões tradicionais e contemporâneas.
Flip+ na Casa de Cultura
Instalada num casarão de 1754, a instituição terá mesas literárias, lançamentos de livros e conversas sobre produções recentes. Autores como Caetano Galindo e Roseana Murray já confirmaram presença.

Flipzinha e Flipzona
Os desdobramentos para os jovens e pequenos leitores ocupam a Praça da Matriz. Neste ano eles vêm com o tema Planeta Vivo, com foco em mudanças climáticas. Nomes como Denilson Baniwa, Roseana Murray, Raphael Montes e o grupo Barbatuques estarão por lá.
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Os cinco autores internacionais de maior destaque
Ricardo Araújo Pereira

O ator, comediante e escritor integrou o grupo Gato Fedorento, que revolucionou o humor português e foi uma das principais referências do Porta dos Fundos. Desde 2020, comanda na TV lusa o programa Isto É Gozar com Quem Trabalha, humorístico com sátira política em formato de talk show. Colunista da Folha de S.Paulo, ele tem títulos publicados aqui pela Tinta-da-China Brasil, entre eles os ensaios A Doença, o Sofrimento e a Morte Entram num Bar (2022) e Coisa que Não Edifica Nem Destrói (2025).
Ilan Pappe

Descendente de judeus alemães que fugiram do nazismo, o israelense é um dos principais nomes dos chamados “novos historiadores”, grupo que reexaminou criticamente a história da Palestina, do sionismo e do Estado de Israel. Por se dedicar à denúncia do extermínio do povo palestino, sob perspectiva antissionista, ele enfrentou pressões e ameaças que o levaram a bus- car asilo na Inglaterra, onde vive até hoje. A Limpeza Étnica da Palestina (2012) é considerado seu livro mais importante.
Valer Hugo Mãe

Filho de portugueses, nasceu em Angola, mas cresceu e vive em Portugal. Frequentemente, aborda assuntos como a condição humana, a busca por identidade e as relações. Ele vai falar sobre a adaptação brasileira de O Filho de Mil Homens para a Netflix, além de seu sucesso no país, onde se passa um de seus romances mais recentes, As Doenças do Brasil (2021).
Rosa Maria Montero

Com uma trajetória reconhecida no jornalismo, é hoje um dos principais nomes da literatura espanhola, com best-sellers em vários idiomas. Temas como a condição humana e feminina, a mortalidade e a saúde mental estão presentes em sua obra, que constantemente mistura ficção e realidade. Entre seus livros publicados no Brasil estão A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver (2019), O Perigo de Estar Lúcida (2023) e A Louca da Casa (2024), todos pela Todavia.
Sandro Veronesi

Embora seja autor de mais de vinte livros, o escritor italiano é um fenô- meno recente no mercado brasileiro: seus livros O Colibri (2024) e Setembro Negro (2025) somam mais de 26 000 exemplares vendidos. Os dois foram adaptados para a telona — o segundo filme, O Colibri, segue inédito no Brasil. Entre os temas centrais de sua escrita estão o luto, a família, a passagem do tempo e aquilo que há de extraordinário na vida comum.