Nada é mais bonito do que protestar com arte, diz Leandro Vieira
Carnavalesco da Mangueira fala sobre enredo da escola em 2018 e muito mais
A quinta-feira (12) foi perfeita. Praias cheias, Fla-flu no Maracanã e Quinta da Boa Vista lotada de crianças. Há muito tempo a cidade não tinha um dia assim. Um dia dedicado à brincadeira, um dia de folga, um dia feliz. Porém, por volta de 13h, no barracão da Mangueira na Cidade do Samba, um radinho tocando O Rappa anunciava que o show de verdade estava apenas começando. Ali, entre carros alegóricos em construção e rascunhos de fantasia, trabalha Leandro Vieira.
Campeão em 2016, o carnavalesco da Mangueira se prepara para um novo desafio. O enredo da verde-e-rosa em 2018 será “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco” e vai tratar justamente dessa alegria que se tornou a marca do jeito de ser carioca. Entretanto, o desfile promete não perdoar quem sempre quis controlar o que sempre foi incontrolável. Na semana em que a escola escolheu o samba e apresentou fantasias, o artista conversou com Veja Rio sobre cultura, censura e muito mais:
Confira os melhores momentos da entrevista:
A ideia do enredo surgiu da redução do repasse de verbas da prefeitura às escolas de samba anunciada em junho?
A ideia não surgiu especificamente do corte, mas da discussão que ele gerou. O enredo não reclama da redução, mas discute os reais motivos que podem estar por trás dela. É uma discussão sobre a pertinência do desfile no mundo de hoje, sobre o futuro da festa e sua ligação com a cultura popular. Nossa ideia é pensar o carnaval, sua importância e a liberdade de pensar diferente. Só a lógica financeira não respalda a redução de cursos, já que é um evento que gera receita para a cidade. Para mim, a questão de fato é outra. O problema é financeiro mesmo ou se trata de um ataque à força de uma manifestação cultural que reafirma a subversão da ordem, a boêmia e outros valores da cultura afro-brasileira? O carnaval é a forma mais plena de liberdade que existe.
E como isso será traduzido em narrativa na avenida?
Iremos mostrar como o carioca brincou o carnaval ao longo da história sem precisar da autorização de ninguém e ressignificando símbolos da nossa sociedade. No carnaval, o homem se veste de mulher, o pobre de rico e a ferramenta de trabalho pode virar enfeite. O enredo não aponta o prefeito (Marcelo Crivella) como único inimigo, mas sim um desfile que se distanciou do grande público e perdeu para os blocos a liderança em termos de representatividade popular. O desfile vai se propor a derrubar portões e aumentar a troca entre a rua e a avenida.
Que carnavais têm lhe servido de inspiração nesse trabalho?
A minha memória de folião é a minha principal referência. Os comportamentos, fantasias e objetos ressignificados que eu vi nos carnavais de rua que brinquei são a minha inspiração. A panela que vira cartola, a rosa de plástico que vira parte da fantasia, o pano branco de bolas pretas que vira a roupa de quem vai para o Cordão do Bola Preta. As fantasias de Pai João, as freiras do Carmelitas, os homens vestidos de mulher nos blocos das piranhas. Sempre fui apaixonado por bate-bolas e os considero o símbolo máximo da cultura marginalizada, que me interessa muito neste momento. Mais do que olhar para o trabalho de um determinado carnavalesco ou para uma certa temática, estou buscando aquele carnaval com opinião, que se posicionava. Quero estar próximo disso e produzir um desfile menos escapista e que dialogue mais com a realidade. Será um protesto bonito, com preocupações plásticas. Nada é mais bonito do que protestar com arte.
Qual é sua impressão em relação ao samba-enredo escolhido?
Para mim, o samba é o principal artigo do desfile. É ele que gera o discurso, que é a grande estrela. Considero o samba que escolhemos excelente porque ele diz claramente o que vamos tratar no enredo. É um samba que se manifesta, que chama para a mudança. E dá um recado claro: “pecado é não brincar no carnaval”. Gosto muito de outros versos também. “Vem vadiar por opção”, “a minha escola de vida é um botequim”, “sou mestre-sala na arte de improvisar”, “pouco me importa o brilho e a renda” e “a rua é nossa mas é por direito” são alguns deles.
E você não sofreu alguma forma de pressão por estar desenvolvendo um enredo como esse?
Nenhuma. A Mangueira está alinhada com a proposta. Não tive nenhum tipo de oposição nem restrição por parte de ninguém. Não à toa, o enredo é apontado por quem acompanha carnaval como um dos melhores e mais pertinentes do ano que vem.
Enquanto artista, como você enxerga as manifestações recentes de censura à exposição Queermuseu e outros trabalhos?
No Brasil, a ideia de censura é muito associada ao que aconteceu no regime militar. Naquela época, havia uma censura institucionalizada. As manifestações de arte estavam sob o crivo que pessoas que podiam autorizá-las ou não. Daí, todo o trabalho de Caetano, Chico e diversos outros artistas e obras que encontraram maneiras subliminares de transmitir suas ideias. Hoje, a censura institucionalizada é condenada de forma universal. Porém, muitas pessoas a disfarçam na forma de falsas defesas da moral, dos bons costumes, do combate ao crime. O distanciamento também é uma forma de censura. Você cria uma desculpa e não se aproxima do movimento LGBT, do carnaval, das manifestações afro-brasileiras. Para mim, não trazer a Queermuseu ao MAR foi uma censura disfarçada de defesa de moral. Expulsá-la do Santander Cultural em Porto Alegre foi uma censura disfarçada de combate à pedofilia. Acho importante dialogar, discutir e entender os dois lados da questão, mas creio que a liberdade é fundamental para os dois lados também. Ninguém deve dizer o que é arte nem decidir o que deve ir para o museu. Na sua individualidade, cada um pode ter uma opinião. Mas censurar é errado.
Nos últimos anos, o Brasil passou por uma série de instabilidades políticas nas quais quem estava no poder negociou entre si, mas quase sempre sem nenhuma oposição organizada. Aqui no Rio, um aumento de IPTU foi aprovado no começo de setembro sem grandes mobilizações populares. Você não considera louco que venha justamente da Mangueira um dos poucos protestos contra o estado das coisas nos nossos dias?
Eu penso muito no papel da escola de samba no nosso cenário atual. Acho que o nosso posicionamento deve ser o de trazer de volta a capacidade que o samba tem de ser resistência. Afinal, a história do samba é uma história de luta. É uma cultura gerada junto com a religiosidade afro-brasileira, que já se disfarçou de candomblé para poder sobreviver e que foi perseguida oficialmente. As escolas de samba foram resistência durante muito tempo e perderam um pouco esse caráter quando ganharam o apoio dos governos oficiais, que veio traduzido em dinheiro. Esse apoio calou um pouco as escolas no sentido de ir contra a corrente. Mas a Mangueira agora vem romper esse silêncio em um momento em que a liberdade popular está sob ataque. É como se estivéssemos dizendo: “nós continuamos acreditando nas mesmas coisas e estamos aqui para comprar essa briga”.
Mas você não considera que o samba, ao aceitar o apoio oficial e fazer outras concessões à sociedade, pode ter cedido demais para ser aceito e perdido um pouco essa essência?
Acredito que a pertinência do desfile precisa ser repensada pelas próprias escolas de samba e que o carnaval é uma cultura popular viva. Ele existe em constante transformação e evolução. Para mim, a grande beleza das escolas de samba é a capacidade que elas têm de se reinventar. Vivemos em um mundo muito rápido, veloz, com uma sociedade que muda de opinião e acho que o desfile deve ser repensado nesses termos. Ninguém pode dizer se as escolas estão no começo, no meio ou no fim de sua caminhada hoje. Ninguém pode apontar se elas são uma rosa em semente, em botão ou em flor. Justamente porque elas estão se transformando a todo momento. E isso tem ainda outra consequência. Não está na mão de ninguém a decisão se vai haver ou não o desfile das escolas de samba. Para acontecer, ele depende menos de termos dinheiro do que de termos liberdade para expressar ideias. Essa não é uma discussão política ou de politicagem, nem restrita ao prefeito. A figura dele só se tornou emblemática porque ele representa na nossa cidade essa onda conservadora que existe no país. Não a pessoa dele, mas a agenda dele, a bancada dele.
Você comentou que as escolas de samba perderam para os blocos o protagonismo do carnaval carioca. Por que você acha que isso aconteceu?
Para mim, as escolas de samba se fecharam em um parque em que você paga para entrar. E não são todas as pessoas hoje que têm dinheiro para o ingresso. O problema que eu enxergo não é as escolas estarem dentro desse parque. Até porque o desfile está de fato mais caro e é preciso ganhar dinheiro. O que não é obrigatório é que as escolas estejam só dentro do parque. Se elas tivessem mantido a proximidade com suas comunidades, talvez essa história fosse diferente. Essa proposta de ensaios gratuitos na rua que surge com o fim dos ensaios técnicos no sambódromo pode ser uma primeira resposta a esse problema. Por que não pode haver um dia de apresentação oficial na Sapucaí e a presença das escolas no calendário de blocos da cidade? Para existir paixão, é preciso namoro. Para existir namoro, é preciso encontro. Se as escolas não estão indo ao encontro, como elas querem despertar novas paixões? Quando as escolas entenderem isso, ninguém mais segura. Talvez elas vivam hoje da paixão de quem já teve esse encontro. Mas como vão conquistar novos apaixonados? E isso também tem muito a ver com esse momento nosso. Será que o prefeito deixaria a Mangueira expor o que estamos preparando no MAR? Será que a nudez que existe no desfile seria permitida em outros espaços? Por essas e outras, eu queria que o samba estivesse menos no caderno de cidade e mais no caderno de cultura dos jornais.
Além do título, o que você espera conquistar em 2018?
Nossa principal conquista será mostrar que as escolas de samba ainda são capazes de resistência e de levantar uma bandeira. Que o carnaval pode sim estar alinhado a um discurso moderno e discutir as questões da sociedade e do mundo no nosso tempo. Que o carnaval é arte plena e é papel da arte levantar questões, abrir os olhos das pessoas para o que acontece no mundo e não se restringir apenas a enaltecer uma figura ou contar uma história.