Refúgios musicais se multiplicam em meio à pandemia

Das reinvenções profissionais às propriedades terapêuticas, música revitaliza corpos, mentes e carreiras

Por Anna Luiza Barreto, Bruna Abinara, Jeane Moraes, Renata Marins e Vitória Lemos*
Atualizado em 3 fev 2021, 11h46 - Publicado em 3 fev 2021, 11h46
A imagem mostra dois músicos tocando em um pátio de condomínio
Double Face: entretenimento aos vizinhos (PUC-Rio/Divulgação)
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Dentre as artes valorizadas e recicladas pelas circunstâncias da pandemia, a música revela-se uma das principais. Capaz de transmitir e intensificar sentimentos, tem sido uma grande aliada para encontrar maneiras de se recompor perante a crise global. Uma pesquisa realizada pela plataforma de streaming Deezer, com 11 000 entrevistados de diversos países, apontou que 30% deles ouvem música para combater a solidão imposta pelo isolamento social.

Enquanto ouvintes exploram as canções como auxílio na quarentena, músicos descobrem maneiras reinventar a profissão e continuar produzindo. Thiago Massimino, integrante da banda Double Face, ao lado do irmão Diego, conta que, no início do isolamento social, utilizaram o “poder de recriação com a ideia de fazer shows no próprio condomínio”. Além de entreter os vizinhos, eles buscavam arrecadar alimentos para doar aos mais prejudicados com a pandemia. Assim criaram o projeto “Alimente com música”.

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Thiago lembra que, quando decretada a quarentena, ele e seu irmão ficaram “bastante assustados”, pois estavam numa escala crescente de trabalhos. Com músicas tocando nas rádios, clipe na TV e agenda de shows, precisaram de “um tempo para perceber que nada daquilo seria possível durante um determinado período”. Aí veio a ideia de fazer um show no condomínio.

Os vizinhos apoiaram a iniciativa num grupo de WhatsApp, e as apresentações deslancharam no compasso da solidariedade. Quase trinta shows arrecadaram seis toneladas de alimentos. Thiago comemora a capacidade de recriação aguçada com a pandemia:

“Acredito que sempre devemos olhar para tudo o que acontece de maneira positiva. Os pontos negativos são apenas obstáculos que temos que vencer. Vimos que podíamos nos manter acesos em relação à música, levar entretenimento para algumas pessoas e arrecadar alimentos para os mais necessitados.”

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Apesar deste sucesso, o músico relata que a quarentena encurtou a receita, prejudicada pelo cancelamento de shows, e frustrou o plano de impulsionar a carreira em 2020. Por outro lado, Thiago reitera que se reinventar e continuar trabalhando, mesmo de forma voluntária, foi importante para que “seguissem em frente e, principalmente, ajudar em um momento tão delicado.”

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Os shows acompanhados pelas janelas eram acolhidos com exclamações como “Você salvou meu dia!” e “Vocês fizeram o meu aniversário mais feliz!”. Esses “sentimentos bons”, diz Thiago, jamais serão esquecidos.

Música na pandemia – vizinha da banda Double Face – divulgação
A vizinhança vibra: moradora assiste ao show da Double Face (PUC-Rio/Divulgação)

A música também teve grande importância para vestibulandos. Maria Eduarda Alvim, de 18 anos, conta que as experiências musicais na pandemia foram fundamentais para ela superar preocupações com o vestibular e problemas pessoais acentuados na crise sanitária. Com o auxílio da música, a estudante superou, angústias, inquietações e os pensamentos de desânimo e de desistência:

“Posso dizer que foi um refúgio ter a música durante esse isolamento. As letras podem sempre ajudar em qualquer situação e a melodia, de um jeito ou de outro, ajuda a acalmar. Eu amo música, não sei se aguentaria um dia sem.”

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O músico e psicólogo Luiz Palizza explica que a música é um potente canal expressivo de sentimentos e afetos em conexão com a coletividade. Quando “integrada à interioridade do sujeito”, torna-se uma ferramenta de transformação. De acordo com o especialista, a música também pode ser usada como uma espécie de anestésico para a angústia. Mas ele prefere o uso “reflexivo, expressivo e afetivo”, que contribui para a liberação de hormônios importantes ao bem-estar, como a dopamina e a oxitocina.

As propriedades relaxantes contrastam, porém, com a aflição vivenciada por músicos autônomos cuja renda, sustentada por aulas particulares e shows em bares, despencou na pandemia. Estudante de Licenciatura de Música na Unirio, Lucas Rodrigues, de 22 anos, recorda que a perda dos alunos no início da quarentena foi a sua maior preocupação. A angústia inicial deu lugar, contudo, à animação com novas frentes de trabalho abertas com aulas e apresentações digitais:

“Muitos músicos aprenderam a dar aulas online, filmar a si mesmos com uma boa qualidade, produzir vídeo, gravar o próprio som, regular, mixar. A capacidade do músico de se reinventar e de empreender cresceu de forma exponencial”, observa.

Segundo dados do Youtube, a procura por conteúdos ao vivo cresceu 4.900% no Brasil durante a pandemia. De acordo com a consultoria americana Tubular Labs, especializada no segmento de vídeos na internet, o crescimento de transmissões ao vivo pelo Youtube no fim de março do ano passado, fase inicial da quarentema, foi de 19%. Isso corresponde a uma média de quase 3,5 bilhões de minutos de conteúdo por dia.

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A imagem mostra um estudante tocando violão
Lucas Rodrigues: música ajuda a relaxar (Acervo pessoal/Reprodução)

A ciência explica por que buscamos sistematicamente a música para reequilibrar a realidade. A cantora, compositora e PhD em neurociência Julie Wein ressalta que temos uma ligação intrínseca com a música, desde o nascimento. As primeiras coisas que o sistema auditivo entende são as melodias. Além disso, Julie especialista destaca o poder musical sobre as emoções, “porque o processamento cerebral envolve a interação de outros sentidos, como a visão e a audição”.

Julie acrescenta que a música pode atuar de forma positiva nesse período de distanciamento, aflorando sensações como alegria, serenidade, nostalgia e até tensão – assim como um amigo. Ela afirma também que a experiência musical é capaz de contribuir para a liberação hormônios que ajudam a regular algumas funções vitais do corpo:

“Os estudos sobre neurociência nos últimos 20 anos vêm mostrando que a música pode ativar esse circuito. A atividade de uma região específica desse circuito, chamada nucleus accumbens, é capaz de prever o nível de prazer evocado por determinada música em uma pessoa. Essa relação está diretamente ligada à liberação de hormônios do prazer. Além disso, a música pode atuar de forma benéfica sobre a pressão sanguínea e batimento cardíaco, entre outras reações fisiológicas positivas”.

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A música revela-se uma potente aliada da saúde mental. O musicoterapeuta clínico Rodrigo Félix recorre ao conceito do musicólogo Victor Zukerquendle para enfatizar a influência “biopsicosocioespiritual”:

“Somos homomúsicos, ou seja, a música está dentro dos nossos arquétipos. Ela é um fenômeno humano, nos influenciando psicologicamente, fisiologicamente e espiritualmente. Somos seres musicais, daí a predisposição natural que temos para fazer música e sermos tocados por ela.”, argumenta.

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Nem sempre as músicas lentas e instrumentais são as mais indicadas para acalmar, aliviar o estresse acentuado por privações e incertezas como as decorrentes da pandemia. O psicólogo Luiz Palizza explica que cada pessoa reage de forma específica a estímulos musicais, a partir de gostos e referências particulares. Se um estilo traz serenidade para uma pessoa, ele pode desencadear emoções opostas noutra. De qualquer forma, Palizza reforça a tese, testada ao longo dos últimos 12 meses, de que a música nos reinventa profissional e socialmente.

Anna Luiza Barreto, Bruna Abinara, Jeane Moraes, Renata Marins e Vitória Lemos*, estudantes de comunicação, sob supervisão dos professores da universidade e revisão final de VEJA RIO

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