Ao final dos aplausos, que só cessaram após dez minutos, bateu um misto de alegria e alívio. “Foi pela reação da família Paiva, por Nanda e toda a equipe que havia feito o filme e por sentir que uma história tão brasileira, tão nossa, também ecoava em outras culturas”, contou a VEJA RIO Walter Salles, que apresentava ao público pela primeira vez, na Sala Grande do Palazzo del Cinema, sob a moldura da bela Veneza, sua nova produção, Ainda Estou Aqui. Mais de 2 000 pessoas ali presentes se puseram de pé, envoltas em emoção por toda a dureza e delicadeza projetadas na tela. Ao lado de Fernanda Torres e Selton Mello, que dão vida aos protagonistas, Walter, 68 anos, não freou as lágrimas, apesar de sua habitual discrição e seletivas aparições sob os holofotes.
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Com a estreia nacional prevista para 7 de novembro e uma sessão especial do Festival do Rio em 21 de outubro, a produção marca não apenas a volta à ativa do cineasta carioca após um hiato de doze anos sem fazer ficção, mas também a quebra do jejum de indicações de filmes brasileiros no prêmio principal do Festival de Veneza, o Leão de Ouro — a última vez havia sido 23 anos atrás, com Abril Despedaçado, do próprio diretor. A largada no circuito internacional rendeu a festejada láurea de melhor roteiro em Veneza e deu visibilidade à obra, que acabou sendo pinçada entre várias para representar o Brasil na corrida pelo Oscar de 2025, onde tenta emplacar uma vaga entre os finalistas de melhor película internacional — uma reprise do que Waltinho viveu em 1999, com Central do Brasil, que alçou Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, ao panteão das indicadas a melhor atriz. Desta vez, é a filha que brilha, tendo recém-faturado o prêmio de melhor atriz internacional por sua atuação no Critics’ Choice Awards, da prestigiada associação de críticos de cinema dos Estados Unidos.
Nas palavras de Waltinho, Ainda Estou Aqui é uma história sobre “resistência e reinvenção”. Ao longo de duas horas e dezessete minutos, a trama, baseada no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, de 2015, narra a trágica jornada percorrida pela família do escritor e, sobretudo, a incansável luta de sua mãe, Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, pelo reconhecimento do assassinato do marido em plena ditadura militar. Vivido por Selton Mello, Rubens Paiva, o pai, teve o mandato de deputado federal cassado após o golpe de 1964 e, em 1971, foi torturado e morto em um quartel militar no Rio de Janeiro, sob a alegação de manter clandestinas ligações com o MR-8 (Movimento Revolucionário de 8 de Outubro). Conhecido pela criteriosa escolha dos projetos que abraça, a ideia da produção entrou no radar de Waltinho por questões que habitam aquelas camadas mais fundas e pessoais. “Tinha o desejo de contar uma história que me acompanha desde a adolescência e que o extraordinário livro do Marcelo trouxe à tona”, explica ele, que era amigo de uma das filhas de Rubens, Ana Lúcia, a Nalu, e frequentou muito a casa dos Paiva. “Ele focou mais uma vez no Brasil, agora de maneira mais direta e pelo viés feminino, já que é a protagonista que conduz o processo de resistência e construção da dignidade”, avalia Hernani Heffner, diretor da cinemateca do MAM.
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De Terra Estrangeira, primeiro longa de ficção aclamado do diretor, em 1996, a Ainda Estou Aqui, quase três décadas se passaram na bem-sucedida trajetória de Walter Salles, que contabiliza vinte documentários e ficções. Entre um e outro, o público pode passear por diferentes Brasis e momentos da história pelos olhos do cineasta e de seus personagens, como em Central do Brasil, Abril Despedaçado e Linha de Passe. Presente em Terra Estrangeira e ainda em O Primeiro Dia, Fernanda Torres observa, sob um privilegiado ponto de vista, o que mudou no trabalho com o diretor. “Walter já dava as diretrizes de atuação no ouvido da gente, em voz baixa, muito gentil e delicado para dizer o que faltava na cena ou o que queria experimentar”, lembra. “Ele ainda fala no ouvido e gosta de mexer em detalhes da atuação de um ator sem que os outros saibam, mas agora me parece mais maduro”, diz a protagonista, que analisa: “A música não empurra a emoção, os planos não sublinham a intenção. Este é um filme de quem aprendeu a confiar na alma da história”. Também Selton Mello cultivava há tempos o desejo de atuar sob as lentes de Waltinho. “Ele é um dos maiores do Brasil e do mundo, então tinha muita curiosidade de ver como era seu trabalho de perto”, fala.
Depois de Diários de Motocicleta, Água Negra e Na Estrada, rodados fora do país, não é só ao Brasil que o diretor retorna, mas também à sua cidade natal. “Essa família de São Paulo havia optado por morar no Rio em um momento que era o tambor cultural e político do país. Na música, na arquitetura, na literatura, no cinema e nas artes plásticas, muito do que éramos acontecia em terreno carioca”, comenta o diretor, que buscou, na primeira parte do filme, “capturar a pulsação dessa cidade que ecoava naquela casa que eu conheci”. Ainda Estou Aqui começou a ser filmado em junho de 2023 e passeou por dezesseis bairros, entre Urca, Leblon, Ipanema, Centro e Engenho de Dentro, com sequências que reproduzem o tenso clima político instaurado à época da prisão de Rubens Paiva — há cenas de uma blitz no Túnel Rebouças e de caminhões do Exército cruzando à luz do dia a Delfim Moreira, onde a família do deputado (ele, Eunice e os cinco filhos) morou numa casa que não mais existe. “A casa é um personagem em si”, define o diretor, que conviveu com os Paiva ao retornar de Paris, onde viveu dos 6 aos 13 anos. “O Rio que reencontrei em 1969 estava diferente. Aquele era um país sob censura, inseguro. A casa da família Paiva, por estar sempre de portas e janelas abertas para o mundo, por acolher tanta gente de turmas distintas, me reconciliou com a cidade”, afirma.
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Recriado na Urca, o imóvel impressionou o próprio Marcelo, que disse ter sentido na locação até o cheiro da residência que habitavam. O cenário era tão detalhista que trazia uma conta de luz da Light de 1971 no nome de Eunice. Escolhido pela semelhança com o endereço original, o lugar já tinha passado por uma modernização e, para deixá-lo idêntico, a produção fez nova reforma. A biblioteca foi preenchida com livros da época e encheram os cinzeiros de guimbas de cigarro. Fernanda Torres diz ter “viajado no tempo” porque, além da reconstituição, “filmar na Urca foi um presente”. Ela explica: “É um bairro parado no tempo, que sobreviveu ileso à corrida imobiliária que pôs meia cidade abaixo. Um Rio que conheci, de casas baixas”. Para a atriz, essa atmosfera contribuiu inclusive para as elogiadas atuações do elenco. “Tudo isso influenciou na forma de representar, realista até não poder mais, crível, sutil”, enfatiza Fernanda, cuja performance arrancou esfuziantes elogios. Também a mãe, Fernanda Montenegro, participa de Ainda Estou Aqui, na pele de Eunice mais velha. “Filmar com as duas era um sonho que eu acalentava. Foi um presente para toda a equipe”, diz Waltinho.
As reconstituições tão fidedignas desse Rio antigo podem ser creditadas ao estilo do cineasta, que a diretora Daniela Thomas, sua parceira em produções há três décadas, classifica como “artesanal”. Quando não recorreu ao super-8, ele filmou em película de 35 mm. Não usou câmera digital em nenhum momento. Produtora associada do filme (“denominação genérica para alguém que está ali para o que der e vier”, segundo a própria Daniela), ela ressalta a atenção aos detalhes. “Ele repensa e elabora o filme diariamente em todas as suas minúcias”, revela. “A direção dele é de uma delicadeza ímpar. Todos os figurantes que aparecem nas cenas na Praia do Leblon, por exemplo, sabem exatamente o que estão fazendo ali”, entrega. Além de um luminoso Leblon, há outro Rio, tenebroso, sombrio, que é retratado no filme. No antigo Instituto Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, foi reconstituído o DOI-Codi, extinto órgão de inteligência e repressão do Exército onde estiveram presos Rubens Paiva, Eunice e a filha Eliana. Ali, a cena de um interrogatório ganhou sons na mixagem a partir das lembranças de Daniela, que teve o pai preso no mesmo lugar durante a ditadura e lá o visitou algumas vezes. “Tinham filmado um interrogatório silencioso, mas eu lembrava de ser barulhento, com sons terríveis”, diz. O Centro carioca também abrigou locações relevantes. “Partimos em busca da cidade da qual lembrávamos dos anos 1970, e o Centro foi um celeiro para reviver esse Rio”, arremata o diretor.
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As gravações de Ainda Estou Aqui reforçam a vocação do Rio em servir de cenário — e que cenário. No ano passado, a média de sets chegou a 21 por dia nessas praias. Segundo a Rio Film Commission, a cidade se situa entre as mais filmadas no mundo, com 7 885 diárias em 2023, à frente até de Paris, com 7 400. Das 26 produções internacionais, a maioria escolheu rodar na orla: a Avenida Atlântica alojou sete delas, o Arpoador, quatro, e a Praia do Flamengo, três. Receberam um bom incentivo — um retorno de 30% do valor gasto. “A primeira pergunta que as empresas fazem é justamente o valor do cash rebate”, conta o secretário municipal de Cultura, Marcelo Calero. E o Rio ainda sopra a favor em outras frentes. “Possui belas paisagens e uma população acostumada com sets nas ruas. O carioca não reclama, até gosta e se orgulha”, observa o secretário. Por experiência própria, Waltinho concorda: “A cidade e seus moradores foram cúmplices da filmagem, o que nem sempre acontece”, diz o cineasta, que vive no Rio e é pai de Vicente, de 17 anos, e Helena, de 15, do casamento com a artista plástica Maria Klabin. Foi em sua cidade natal que o filho do embaixador que fundou o Unibanco — hoje dono da 12ª maior fortuna do país, segundo a Forbes — deu a largada a uma das trajetórias mais notáveis da história do cinema brasileiro. Que esta maravilha de cenário lhe traga mais e mais láureas.
Silêncio, gravando
Curiosidades sobre os bastidores das filmagens de Ainda Estou Aqui