Mais saúde para todos em tempos de Coronavírus
Por que, mesmo com tantas experiências ao longo da nossa história, ainda não estamos preparados para combater epidemias nos subúrbios, favelas e periferias?
Em meio a essa turbulência que estamos vivendo, em função de uma pandemia gerada por um novo vírus, é necessário propor algumas reflexões, críticas e denúncias sobre a questão da saúde pública em nosso país. Não é o momento para ser alarmista nem criar pânico num cenário que já é de grande temor, mas precisamos advertir, pois há séculos sofremos a cada nova moléstia que aparece, em função da demora ou da falta de preparo governamental.
Febre amarela, febre tifóide, varíola, peste bubônica, cólera, gripe pneumônica, tuberculose, dengue, H1N1, gripe aviária, zika, chikungunya e, mais recentemente, o coronavírus são alguns exemplos. Parece até uma música dos Titãs, “O pulso ainda pulsa…”, mas infelizmente é real.
A transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em março de 1808, trouxe, junto com o aumento populacional e a falta de planejamento, também as grandes aglomerações. A escassez de moradias salubres e a precariedade no saneamento foram consequências que contribuíram para que as epidemias se disseminassem durante todo o século XIX até o início do XX.
Temendo o devastador efeito econômico e social das endemias, no ano de 1811 o governo joanino criou a primeira Junta Vacínica da Corte – que não foi suficiente para conter o grande surto de varíola de 1834. Somente 12 anos após a crise é que foi criado o Instituto Vacínico do Império.
A população ainda se recuperava quando, em agosto de 1849, aportou na cidade a fragata inglesa Apollo, trazendo passageiros vitimados pela cólera. A Academia Imperial de Medicina alertava que, junto com a enfermidade recém-chegada, também ocorria rapidamente a propagação da febre amarela.
No livro “História das Ruas do Rio”, Brasil Gerson conta que “a partir de 1849 o Rio foi assolado por uma epidemia de cólera-morbus, que matou 2.300 de seus habitantes”. A doença era proveniente, sobretudo, dos portos infectados em Espanha e Itália.
Depois de muitas adversidades, o governo imperial instituiu a obrigatoriedade da quarentena para os navios estrangeiros que pretendiam desembarcar na capital. E em 1884, o inspetor-geral de Saúde dos Portos tornou-se o responsável por construir um novo e moderno lazareto.
Mesmo após a queda de D. Pedro II e a chegada da Primeira República, as epidemias não recuaram. E mais uma vez o governo agiu de forma reativa e morosa criando, apenas em 1900, o Instituto Soroterápico Federal, primeira instituição a produzir soro no País. Foi nessa época que o médico Oswaldo Cruz assumiu a Direção-Geral do Instituto, logo sendo nomeado também diretor-geral de Saúde Pública.
Apesar dos esforços empreendidos não foi possível conter o desembarque de uma nova e nociva forma de gripe, junto com os tripulantes do transatlântico Demerara, recém-chegado da Europa em setembro de 1918. Nem mesmo o presidente da República reeleito, Rodrigues Alves, foi poupado. Faleceu nos primeiros dias do ano de 1919, antes mesmo de assumir seu mandato, vítima da gripe espanhola.
A doença se alastrou com uma velocidade espantosa. Há relatos de que, em apenas um único dia, o Rio chegou a registrar mil mortes. Acredita-se que somente no primeiro ano da epidemia tenham morrido mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, superando em muito o número de mortos contabilizados ao fim da Primeira Grande Guerra (1914-1918), que vitimou cerca de oito milhões.
O presidente interino da época, Delfim Moreira, se viu obrigado a assinar um decreto garantindo que nenhum aluno deveria repetir de ano; e um projeto de lei chegou a ser elaborado para ampliar em 15 dias o prazo de pagamento das dívidas. O governo também teve que proibir aglomerações públicas, fechou teatros e cinemas e mandou lavar e desinfetar ruas e edificações.
Os preços de fórmulas farmacêuticas e remédios subiram vertiginosamente, e os mais pobres tentavam criar seus próprios medicamentos e rituais de proteção. O Instituto Brasileiro da Cachaça relata que foi nessa época que se popularizou um remédio caseiro feito da mistura de cachaça, limão e mel – a nossa hoje tão famosa caipirinha.
Nos últimos anos, vários outros males assolaram o Brasil: tivemos hanseníase, malária, poliomielite, sarampo, HIV, entre outras doenças que contribuíram para a criação, em 1930, do Ministério da Saúde, e a partir de 1988, do Sistema Único de Saúde (SUS).
Problemas de saúde sempre afetam muito mais do que apenas as famílias diretamente envolvidas. No caso específico dos subúrbios, geralmente as doenças mobilizam um grande número de pessoas – vizinhos e amigos são os primeiros a chegar para prestar socorro, muito antes do SAMU. A solidariedade vai desde ligar pedindo socorro até se movimentar para acompanhar no hospital, organizar visitar, fazer compras, cozinhar, e até mobilizar uma vaquinha para levantar alguns trocados.
Neste momento em que um novo quadro de crise se agrava, temos que ficar muito atentos aos subúrbios, às favelas e periferias. Presenciamos um crescente sucateamento dos nossos serviços de saúde e assistência públicas, sem conseguir oferecer de forma adequada serviços básicos como coleta de lixo, tratamento de esgoto e água encanada e de qualidade para todos os cariocas.
A grande concentração característica dos subúrbios reflete nos transportes superlotados, no alcance das enchentes recorrentes, em muitas construções irregulares, geminadas e subdivididas, onde muitas vezes um único cômodo abriga várias pessoas de uma mesma família, com pouca iluminação e ventilação, o que gera um risco iminente para a saúde coletiva.
Não podemos continuar errando, arriscando perder mais vidas. A sociedade civil tem o direito de cobrar do poder público, pois somente através de mais e melhores investimentos é que poderemos tentar reverter esse cenário de tamanha desigualdade.
Este é o momento de mirar nos exemplos suburbanos e nos solidarizar tanto na saúde quanto na doença, pois é na solidariedade que os subúrbios seguem resistindo.
Escrito pelo historiador suburbano, Rafael Mattoso, com ajuda e revisão da jornalista, Sandra Crespo.