“É preciso ampliar o olhar sobre feminicídio”, alerta pesquisadora da UFRJ

Em entrevista, Cristiane Brandão ressalta a necessidade também de ampliar os centros de referência à mulher para conter o avanço deste crime

Por Olívia Itagiba*
Atualizado em 5 jan 2023, 15h06 - Publicado em 2 jan 2023, 16h50
violência doméstica
Violência contra a mulher: casa da vítima é o palco da maior parte das situações relatadas no Ligue 180 (6 336), e a faixa etária da maioria oscila entre 40 e 44 anos (2 146), sendo majoritariamente mulheres pretas e pardas (7 860). (Elza Fiúza/Agência Brasil)
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Concentrado nas áreas e populações vulneráveis, o feminicídio – homicídio derivado da condição de gênero – mantém-se alarmante. A queda dos casos assinalada por alguns levantamentos revela-se artificial, alertam pesquisadoras como Cristiane Brandão, coordenadora do Observatório Latino-americano de Justiça em Feminicídio e do Grupo de Pesquisa sobre Violência de Gênero, da UFRJ.

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O Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio, crime há sete anos tipificado em nosso Código Penal. O país contabilizou quase 700 casos no primeiro semestre de 2022, calcula o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A cada seis horas, uma mulher é morta por ser mulher. Uma suposta melhora em relação à hora e meia indicada no Mapa da Violência de 2015.

Para Cristiane, a regressão é ilusória, pois os registros ainda se fixam em casos associados a relações íntimas. “É preciso ampliar o nosso olhar sobre o feminicídio e sobre as violências em geral contra as mulheres, não atreladas exclusivamente ao âmbito doméstico, como a violência institucional, a laboral, a obstétrica”, ressalta a especialista, professora de direito penal e criminal.

Foto mostra foto de pesquisadora sorrindo e apoiando o rosto com uma mãe. Ela está sentada em frente a um restaurante, usa blusa cinza e tem cabelos castanhos longos
Cristiane Brandão: pesquisadora é coordenadora do Observatório Latino-americano de Justiça em Feminicídio e do Grupo de Pesquisa sobre Violência de Gênero (./Arquivo pessoal)

Nesta breve entrevista, Cristiane enfatiza a urgência também de ampliar os mecanismos de combate a essas violências para conter seu avanço no país e no Rio. Considera especialmente importantes os centros de referência à mulher implantados em comunidades. Espaços dedicados a construir condições para mulheres pobres se emanciparem emocional e financeiramente dos agressores.  

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O feminicídio está tipificado no Código Penal desde 2015. Até que ponto isso ajuda a mapear a violência contra a mulher?

– Os números do Mapa da Violência de 2015 estavam mais próximos da realidade do que esse que agora classifica exclusivamente os feminicídios. Na minha pesquisa, nos Tribunais do Júri, me deparei com muitos casos não classificados como feminicídio, mas que, para nós que estudamos esse fenômeno social, deveriam ser configurados desta maneira. O olhar da Justiça criminal para determinadas formas de homicídio de mulheres nem sempre entende o que é feminicídio. Então, hoje, quando se olha para as ocorrências de feminicídio no Brasil, comparadas com o Mapa da Violência de 2015, a impressão é de que a quantidade caiu. Temos a sensação de que a política pública de combate ao feminicídio está funcionando porque os números estão supostamente caindo, entretanto, não é assim.

Então, é preciso melhorar a identificação dos casos de feminicídio, para aproximar as políticas públicas da realidade?

– O sistema de Justiça criminal ainda costuma reduzir o fenômeno do feminicídio à violência doméstica contra a mulher. Esse sistema abrange a esfera da delegacia e de todas as instituições voltadas para investigação. Quando reduzidos à violência doméstica, os casos aparentemente diminuem. Outros tantos, que também configuram mortes violentas de mulheres, deveriam ser entendidos como feminicídio. Mas não estão registrados oficialmente sob o critério atual. 

– Você acredita que essa taxa não diminuiu?

– É um fato. Se considerarmos as estatísticas de 2015, especialmente a do Mapa da Violência que elevou o Brasil ao 5° lugar no ranking mundial de feminicídio, e comparar com dados de anos posteriores, percebe-se uma aparente queda. Antes o país registrava um feminicídio a cada hora e meia, ou melhor, uma morte violenta de mulher a cada hora e meia. Hoje se fala em um feminicídio a cada sete horas. Ainda assim, é uma quantidade absurda. Mas, ao nosso ver, muitos casos que deveriam ser tratados como feminicídio não estão sendo catalogados desta forma. Daí a aparente queda.

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– Como identificar e registrar melhor os casos de feminicídio? O que caracteriza este tipo de violência?

– Depende da interpretação do agente policial que registra a ocorrência, pois os números são obtidos a partir dos registros. Quando o homicídio está associado a violência doméstica ou familiar contra uma mulher, especialmente numa relação íntima, quando ela é morta por marido, namorado ou ex-companheiro, há uma tendência de se identificar o crime como feminicídio. Porém, existem casos não associados a relações íntimas que deveriam ser interpretados como feminicídio. 

– Como assim? 

– Por exemplo, eu me deparei, na minha pesquisa, com o caso de uma menina cujo corpo foi encontrado sem as peças íntimas, num lixão, com sinais de violência sexual. A investigação chegou-se à conclusão de que o autor havia sido um vizinho, que a convidara para comer um lanche. Esse crime não foi classificado como feminicídio porque não era nem violência doméstica nem familiar, nem íntima de afeto. Mas, na minha opinião, quando se tem um corpo de mulher com sinais de violência ou de morte violenta, deve-se considerar, em princípio, que se trata de feminicídio, premissa que pode ser descartada na investigação. Observamos o inverso: se não é uma violência íntima, não se começa a investigar a partir do pressuposto de feminicídio. Então, existe essa dificuldade ou interesse político de interpretar o fenômeno feminicídio. 

– Ressalvadas essa dificuldade de interpretação e uma consequente subnotificação de feminicídios, o Instituto de Segurança Pública assinala queda de 12,4% dos casos no estado do Rio entre janeiro e agosto de 2022, em comparação ao mesmo período do ano anterior. Pesquisas indicam, contudo, um avanço dos casos contra mulheres negras, moradoras de regiões pobres, muitas vezes sem condições de acessar um serviço que as proteja da violência sistemática e reduza o risco de morte. Como melhorar a segurança desta população historicamente mais vulnerável ao feminicídio?

Algumas pesquisadoras indicam, e eu concordo com esse ponto de vista, que mulheres de classe média, média alta e alta talvez tenham outros mecanismos de buscar a cessação da violência, por disporem de instrumentos privados e particulares. Por exemplo, se eu vivo em uma situação de violência com meu marido e não quero mais o relacionamento, talvez para não me expor, vale mais a pena contratar um advogado e entrar com o pedido de divórcio, do que propriamente ir até uma delegacia registrar uma ocorrência. Já mulheres pobres estão muitas vezes desprovidas desses instrumentos e recursos privados, e acabam acessando a esfera da delegacia. Até porque, culturalmente, isso acaba sendo o mecanismo informado como o mais correto. Nós das promotorias legais populares não recomendamos sempre a delegacia de polícia como a primeira via. Este recurso de denúncia é necessário muitas vezes, mas há outros instrumentos para coibir a violência.

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Por exemplo? 

– Se a mulher vive numa favela ou num território onde o Estado, a polícia e o Judiciário não entram com a finalidade de protegê-la, a simples denúncia na delegacia pode expô-la, deixá-la vulnerável não só ao agressor, mas também ao entorno das pessoas que comandam aquele território. E ela não vai ter necessariamente a resposta do Estado, porque, por mais que haja a concessão da medida protetiva, qual oficial de Justiça vai entrar naquele território? Então, muitas vezes, esse não é esse o caminho. O caminho talvez esteja muito mais no centro de referência à mulher. Pois lá busca-se fortalecer e emancipar a mulher. É preciso dar condições para ela ter uma liberdade emocional e financeira do agressor, para que que consiga sair da situação de violência. 

– Você avalia, com base nas pesquisas, que o feminicídio no Rio melhorou ou regrediu? 

– Regrediu. Houve um retrocesso enorme. Até porque o governo estadual, alinhado ao federal, não tem repassado verbas para ampliar os mecanismos de combate ao feminicídio. Não observamos interesse político aqui no Rio de criar mais equipamentos, mais centros de referência, investir nos que já temos. Ao contrário, as equipes estão esvaziadas, não há investimento público. A gente luta para que não haja um maior desmonte, para que não regrida ainda mais, para manter o que temos, uma estrutura abaixo do mínimo. A expectativa é que, em 2023, a gente consiga avançar um pouco mais.

– Quais as principais mudanças estruturais, políticas, judiciais, para reduzir o feminicídio no Rio? 

– Um começo é a gente reconstruir as políticas públicas no enfrentamento à violência contra a mulher. Depois, no âmbito legislativo, temos ainda muita coisa a enfrentar, propor e avançar. Sem deixar de reconhecer a importância e a dor nos casos de feminicídio íntimo, temos que partir para a ampliação do nosso olhar sobre o feminicídio e sobre as violências em geral contra as mulheres, não atreladas exclusivamente ao âmbito familiar e doméstico. Há uma gama de violências contra as mulheres ainda invisível. Como a violência política, a violência institucional, a violência no âmbito da educação, a violência laboral, a violência obstétrica. Toda essa gama precisa se tornar visível. Temos de construir esse caminho, sem deixar de construir e amadurecer políticas para o enfrentamento da violência doméstica. Mas, é necessário lançar holofotes noutras violências, sobre as quais não fala com tanta frequência. 

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* Olívia Itagiba, estudante de Jornalismo da PUC-Rio, com orientação de professores da universidade e revisão final de Veja Rio.

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