Caça à baleia: é tempo delas, matéria-prima em alta na indústria turística
O inverno é a época em que esses encantadores mamíferos passam pela costa carioca; 'safaris' marítimos de avistamento estão na mira de órgãos de fiscalização

“Horríveis e espantosas baleias, as quais, mostrando-nos diariamente as grandes barbatanas fora da água e folgando neste vasto e profundo rio, aproximam-se tanto que as podíamos alcançar com tiros de arcabuz”, escreveu, na virada do século XVI para o XVII, o religioso francês Jean de Léry. Àquela altura, o Rio despontava como um vigoroso núcleo baleeiro, e os cetáceos, que tanta admiração despertavam, eram capturados com violência na Baía de Guanabara, tal como pintou Leandro Joaquim, proeminente artista do Brasil Colônia. Nos alfarrábios da época, há registros dos moradores do Centro comentando o agoniante som emitido por esses gigantes dos mares antes de morrer. De cada animal se extraía até 8 000 litros de óleo, utilizados na iluminação das ruas e no preparo da argamassa empregada em construções. A língua era iguaria exportada para a Europa, os ossos viravam botões e farinha, e as barbatanas, leques e espartilhos. Hoje, a caça às baleias fomenta outra indústria – a do turismo. “A gente vê uma espuma branca, esguichos ou saltos e corre atrás”, conta Guilherme Braga, sócio-fundador da Rio Boat Experience, que no ano passado conduziu, junto a uma bióloga, 1 500 pessoas nos chamados passeios de avistamento.

Esses mamíferos vêm engarrafando a costa da cidade entre junho e agosto, no caminho entre a Antártica e o Arquipélago de Abrolhos, na Bahia, em busca de águas quentes para procriar. A empresa comandada por Braga é uma das pioneiras nesse nicho, que se tornou possível com a proibição do abate, determinada em 1986 pela Comissão Internacional da Baleia. Está aí, nessa evolução do olhar sobre o trato da natureza, a principal causa do aumento do fluxo migratório no litoral fluminense. Em 1988, cerca de 1 000 indivíduos estiveram de passagem por estas praias, enquanto no ano passado foram aproximadamente 30 000 – avanço extraordinário. São tantos os casos de avistamentos por aqui que, hoje, já não é mais preciso ir à Bahia para contemplá-las. Os primeiros tours da Rio Boat Experience começaram a ser oferecidos, de forma ainda tímida, em 2022. Atualmente, nos fins de semana, são contabilizadas até três saídas, da Barra ou da Urca, num mesmo dia. A jornada custa 385 reais por pessoa, e há a opção de reembolso de 50% ou reagendamento em caso de elas não darem o ar da graça. “Isso só aconteceu quatro vezes e no final da temporada”, garante Braga, que costuma esbarrar com elas nas cercanias das Ilhas Cagarras.

Em várias dessas bem-sucedidas expedições estava a bordo o fotógrafo Humberto Baddine, especialista em imagens fine art. Há um ano, ele viralizou nas redes ao postar o flagra eternizado por suas lentes de uma jubarte saltando em alinhamento perfeito com o Pão de Açúcar ao fundo. O próprio Baddine classifica a imagem como a “foto da sua vida”. “O que se vê é um verdadeiro safári no mar”, define. Munidos de celulares e drones, caçadores de cliques se lançam ao oceano e se multiplicam a cada inverno, assim como os barcos e botes, que zarpam na temporada mais fria do ano para tentar avistar as gigantescas criaturas aquáticas em trânsito no litoral fluminense. “Virou praticamente um Big Brother da vida marinha”, impressiona-se o também fotógrafo e biólogo Ricardo Gomes, diretor do Instituto Mar Urbano, que desde 2001 se dedica a observar a fauna desse ecossistema.

Tamanha movimentação, porém, vem despertando a preocupação das autoridades. Há registros publicados na internet, inclusive, de barcos que seguiam o rastro das baleias sem cumprir as regras básicas, estabelecidas no Manual de Boas Práticas em Interação com Mamíferos Marinhos do ICMBio. É vetado, por exemplo, ficar a menos de 100 metros dos animais, e o motor não pode ser jamais desligado. No último domingo (6), um vídeo gravado em Arraial do Cabo mostrando o atropelamento de um cetáceo causou revolta. O caso está sendo investigado pela equipe de fiscalização do órgão em parceria com a Polícia Federal. O responsável será autuado e encaminhado para as investigações criminais. Para evitar que cenas como essas se repitam, o ICMBio e a Polícia Federal iniciaram, em junho, uma ação de vigilância e proteção no corredor migratório da Região dos Lagos, que costuma receber em torno de 15 000 exemplares da exuberante espécie por ano. Já a Marinha intensificou a fiscalização da Capitania dos Portos por toda a costa fluminense. As inspeções verificam documentos, equipamentos de segurança e motores dos barcos de avistamento. Além disso, o comandante precisa apresentar um certificado, emitido por organização especializada oficialmente reconhecida, comprovando que é capacitado para realizar manobras seguras de aproximação. “Somente os aprovados em inspeção prévia e com o adesivo ‘Passe Livreí são autorizados”, explica o Comando do 1º Distrito Naval.
As baleias que circulam por nossas águas podem pesar até 100 toneladas ó e um choque com uma delas traz risco à altura de sua envergadura. O coordenador do Laboratório de Mamíferos Aquáticos e Bioindicadores da Uerj (Maqua) José Lailson Brito Junior cita dois episódios que tiveram como cenário a costa de Ilhabela, em São Paulo, no mês passado, e que poderiam ter acabado mal. Em um deles, uma pane mecânica quase fez afundar um bote inflável que levava vinte pessoas para assistir à migração. No outro, o salto inesperado de uma baleia por pouco não atingiu um barco de observadores. “Seria fácil as baleias virarem vilãs dessas histórias”, pontua o professor, que desde 2013 acompanha a movimentação dos cetáceos. As pesquisas incluem a coleta de material dos grandes mamíferos para análise laboratorial e fotografias feitas de cima, com drones, a fim de medi-los. “Ao nos cercar de informações sobre a saúde das sentinelas do mar, entendemos também como vai o oceano”, explica Lailson, que num único dia já chegou a avistar duas dezenas delas. O mais comum é encontrar as mais jovens e os grupos conhecidos como competitivos, em que uma fêmea é cortejada por até cinco machos. A maioria das que flertam com a orla fluminense pertence à espécie jubarte, seguida pela minke e pela franca. Esta última, aliás, teve sua população praticamente dizimada e, por isso, a recuperação é mais lenta.

Quem prefere a segurança da terra firme para observá-las não fica a ver navios. O Parque Bondinho Pão de Açúcar abriu um espaço para receber o Projeto Baleia Jubarte no Morro da Urca. Debruçado sobre uma das mais belas paisagens da cidade, o mirante é ponto privilegiado para admirar esses cetáceos. Até agosto, lá também estará disponível material de conscientização e educação ambiental. Outro camarote para apreciá-las é a Pedra do Arpoador. Mas até a partir da areia dá para ser surpreendido com a presença de uma delas, ainda que seja preciso contar com uma dose de sorte. Para a turma que se dispõe a ir mais longe, a 165 quilômetros da capital, em Arraial do Cabo, na Região dos Lagos, as chances de avistamento da costa se multiplicam graças à estratégica posição geográfica do município. Não por acaso, o diretor do Projeto Baleia Jubarte, Enrico Marcovaldi, chegou a considerála a cidade mais acessível no Brasil para vê-las, especialmente na Praia Grande.
Todo esse magnetismo é encarado com bons olhos por especialistas, sob a perspectiva da sustentabilidade. “A sociedade olha pouco para o mar e acabou se afastando da fauna marinha”, diz Lailson, que, com a equipe do Maqua, recentemente lançou Rio: Mar de Golfinhos e Baleias, livro que se propõe a reerguer tal ponte. Já Ricardo Gomes levou o assunto ao cinema, com Quanto Vale o Azul?, documentário exibido em junho na Conferência do Oceano da ONU em Nice, na França. A produção convida o público a repensar a relação com a natureza, valorizando a riqueza dos mares e a necessidade de um futuro amigável à natureza e de regeneração do planeta. “Precisamos trazer uma nova visão para o oceano”, enfatiza Gomes. A chamada economia azul trata do equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação ambiental, e mostra como isso pode transformar vidas, gerando emprego e renda via turismo sustentável, biotecnologia marinha e pesca responsável. Um belo horizonte ainda por ser alcançado. Que bom que a corrida para chegar lá já começou.

Museu Nacional exibe maior esqueleto de cachalote da América do Sul
Cariocas e turistas têm até 31 de agosto para ver de perto uma baleia — desta vez em terra firme. Em abertura temporária após o incêndio que destruiu quase todos os seus mais de 20 milhões de itens em 2018, o Museu Nacional inaugurou a exposição Entre Gigantes: uma Experiência no Museu Nacional, em que uma das maiores atrações, tanto em tamanho como em interesse, é um esqueleto de cachalote macho de 15,7 metros que chegou em 2022 do norte do Ceará para integrar o acervo. A ossada, de 3 toneladas, fica pendurada a 10 metros de altura no pátio da escadaria monumental, sob uma claraboia recém-instalada. O nome científico da espécie é Physeter macrocephalus, que vem do grego e significa “cabeça grande com narinas”, em tradução livre. A visitação acontece com hora marcada, e é preciso retirar o ingresso pela Sympla. A cada dia, são disponibilizados 300 bilhetes. Um lembrete: a instituição lançou uma campanha para a população nomear a cachalote.

