Cidade do barulho: cresce número de reclamações por perturbação do sossego
Irregularidades e falta de medidas eficazes para solucionar o problema vêm tirando o sono dos cariocas em vários cantos da cidade

Considerado durante décadas um bairro de passagem, quando a boemia carioca gravitava em torno da glamorosa Copacabana ou da fervilhante Lapa, Botafogo passou por uma metamorfose de 2010 para cá. A concentração de serviços, a boa oferta de transporte público e os preços ainda atraentes do aluguel comercial contribuíram para que a região se firmasse como novo polo de bares e restaurantes. Morador da Rua Oliveira Fausto, transversal à Arnaldo Quintela, o advogado André Soares, 47, assistiu de camarote à transformação da vizinhança. Junto com os recém-chegados, porém, vieram noites insones e uma rotina de incômodos que se estende de terça a domingo, em alguns dias até as 3 horas da madrugada. André já acumula mais de trinta reclamações por perturbação do sossego e desordem urbana no 1746, central de atendimento da prefeitura, sem sucesso. “As calçadas viraram extensões dos estabelecimentos. Há gritaria, consumo de drogas, furtos, e os idosos nem sequer conseguem transitar por elas. O único dia tranquilo é segunda-feira”, desabafa. A queixa dele ecoa a insatisfação de milhares de moradores do Rio que têm visto (e ouvido) o barulho aumentar por toda a cidade. Os dados oficiais só confirmam o problema: no primeiro semestre de 2025, foram 15 105 queixas de perturbação do sossego recebidas pelo 1746 — um aumento de 21% em relação ao mesmo período de 2023.

A perturbação do sossego se configura por qualquer ação que provoque ruído excessivo a ponto de comprometer o bem-estar e a tranquilidade alheios. Pode ser gritaria, música alta, barulho de obras fora de hora ou latidos incessantes. No Rio, a Lei do Silêncio determina os limites permitidos conforme o horário e a área da cidade. Em zonas residenciais, o teto é de 55 decibéis entre 7h e 22h, baixando para 50 no período noturno. Em áreas mistas, com residências e comércio, os limites sobem para 65 e 60, respectivamente. No último domingo (13), VEJA RIO esteve no apartamento do aposentado Cláudio Guimarães, 66 anos, em Ipanema, com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas. À 1h30 da madrugada, o medidor marcava 71 decibéis dentro da sala — 11 acima do permitido pela lei. “As festas vão até de manhã e parece que estão acontecendo aqui dentro. O fim do ano passado foi um horror, pensei até em me mudar”, relata ele, sobre os eventos barulhentos que tomaram conta da Lagoa nos fins de semana.
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+ Quais são os bares interditados em Botafogo por ocupar a calçada

Na região do Parque dos Patins, onde antes funcionava o Tivoli Park, os quiosques viraram redutos de festas concorridas entre a juventude carioca. Foi ali que, na madrugada de 23 de maio, o estudante Pedro Rodrigues, de 25 anos, foi brutalmente espancado por seis homens ao sair de uma dessas noitadas. Entre os acusados está o modelo Bruno Krupp, já réu por homicídio com dolo eventual. O Ministério Público denunciou o grupo por tentativa de homicídio qualificado, e dois envolvidos seguem foragidos. “Esse episódio escancarou os riscos da bagunça que está no Rio”, diz Heitor Wegmann, da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Botânico (AmaJB). “Os quiosques viraram boates fechadas, com cobrança de ingresso, ficam cheios de lixo no dia seguinte e descaracterizaram a área de convivência. O que antes era voltado para famílias virou território de desordem e barulho, fazendo da vida dos moradores no entorno um tormento”, complementa. Inundados por reclamações, os operadores dos quiosques Aldeia e Caza vêm tentando contornar o problema junto a uma empresa privada de som que instalou medidores de volume. “Disponibilizamos um técnico que vai até a casa dos moradores e fazemos o controle remoto do áudio, que é bloqueado quando o limite do som extrapola”, garante Júnior Ferreira, da Net Audio Control.

Apesar dos problemas recorrentes, a Lagoa está longe de ser o epicentro do tormento, com casos semelhantes por toda a cidade. “A Praça São Salvador virou uma casa de espetáculos a céu aberto, e nós pagamos o preço”, afirma Isabel Franklin, presidente da Associação de Moradores e Amigos do Flamengo, Parque Flamengo e Adjacências (Amafla). Diante da proliferação de shows e do comércio irregular, sem fiscalização, ela chegou a colher mais de 1 600 assinaturas pedindo limites para eventos na praça, que arrefeceram por um tempo, mas logo voltaram à potência máxima. “As apresentações ultrapassam o horário e o som reverbera longe, gerando estresse extremo e privação de sono”, esclarece Isabel. Como muitos, ela também recorreu à central 1746 — sem retorno efetivo. O calhamaço de reclamações recebido pela central de atendimento da prefeitura é direcionado à Guarda Municipal e à Secretaria de Ordem Pública (Seop). Já a Polícia Militar, ao ser acionada, vai até o local para tentar acabar com o barulho e, se necessário, levar os responsáveis à delegacia, registrando a ocorrência. Entre 2024 e 2025, foram realizadas 5 521 operações de fiscalização por perturbação do sossego na cidade, resultando no total de 892 multas.

A primeira infração pesa: 5 459,93 reais. Em caso de reincidência, o valor dobra. Na terceira ocorrência, inicia-se um processo para cassar o alvará de funcionamento. Em tese. “O barulho, muitas vezes, é agravado por outras irregularidades, como a música e o excesso de mesas e cadeiras nas calçadas, tornando desafiadora a busca pelo equilíbrio do uso do espaço comunitário”, pondera o secretário de Ordem Pública, Brenno Carnevale. A legislação, no entanto, vem abrindo mais brechas para a ocupação desenfreada das calçadas. Um decreto publicado em dezembro de 2023 (nº 53.649) regulamentou a Lei Complementar 226/2020, que autorizava a colocação de mesas e cadeiras em áreas públicas ó agora também liberando a ocupação de vagas de estacionamento, com aval da CET-Rio. A faixa livre para pedestres, antes de 1,20 metro, passou para 1,50 metro. Na noite do último sábado (12), no entanto, a reportagem percorreu a Rua Arnaldo Quintela, em Botafogo, e constatou que não havia nenhuma faixa: com as calçadas lotadas de mesas e cadeiras, o único caminho era o asfalto. Um carro da Guarda Municipal observava a cena, sem intervir. No Leblon, em frente ao Belmonte, a situação não era muito diferente, e os garçons serviam a clientela até no asfalto, como mostram os registros de VEJA RIO.
![Veja Rio [2953] box pg 23 Lei do Silêncio: limite de ruído é estabelecido por região e horário](https://beta-develop.vejario.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/07/Veja-Rio-2953-box-pg-23.jpg?quality=70&strip=info&w=650)
Aniquilar a celeuma parece passar longe das metas da secretaria criada por Eduardo Paes para atuar no ordenamento urbano. “Faz parte da cultura do carioca ir a um bar e beber em pé na calçada. E a lei não proíbe. Existem os abusos, claro, mas algumas denúncias persistem porque há o desejo de exterminar as atividades comerciais. O papel da Seop é atuar como mediador”, pondera, novamente, o secretário Carnevale. A tal mediação está longe de se mostrar eficiente. No Humaitá, o entroncamento entre as ruas Capitão Salomão e Visconde de Caravelas é ponto clássico de desordem. Ali funciona o Fuska Bar, conhecido pela aglomeração, pelas mesas que avançam sobre a calçada e pela música ao vivo. Acumulou cerca de trinta multas nos últimos cinco anos, chegou a fechar e voltou sem (grandes) mudanças. Outro boteco conhecido pelo histórico problemático é o Treme Treme, na esquina da Arnaldo Quintela, em Botafogo, com dezoito autuações, dez delas só em 2024. Em junho, um acidente grave escancarou os riscos da falta de ordem: dois carros colidiram em meio ao tumulto e invadiram a calçada em frente ao bar Kalango. “O comércio esbarra na concorrência desleal de ambulantes e em aglomeração no asfalto, uso de caixinhas de som e tráfico no meio da rua. Também queremos ordem”, frisa Pedro Serrate, presidente da associação de comerciantes da região e dono do Batô Bar, na Fernandes Guimarães.

Se os bares são um problema, as obras também tiram o sossego dos cariocas. No Humaitá, moradores se queixam de barulho ininterrupto vindo da obra da Casa de Saúde São José, com máquinas em atividade até altas horas. “É uma esquina naturalmente barulhenta, com hospital e trânsito, mas essa reforma suplanta o caos. Não adianta reclamar que a prefeitura não faz nada”, brada a planejadora de eventos Nina Lua, 35, que decidiu se mudar por causa do estorvo. Em meio à insatisfação generalizada, surgiram movimentos organizados nas redes sociais, como o perfil Rio de Janeiro Sem Barulho, que chegou a espalhar faixas por ruas boêmias com a frase “Botafogo sem lei. Queremos calçadas livres, ordem e sossego” em letras garrafais. Os cartazes foram arrancados no mesmo dia. Já o perfil Amigos de Copa apostou no deboche para chamar atenção ao problema. Criou o Buteco do Barulho, um “concurso” para eleger os campeões do incômodo. O bar Baeck’s, na Rua Aires Saldanha, levou o troféu de 2025. Perdendo apenas para o Camorim, na Zona Oeste, Copacabana ocupa o segundo lugar no ranking de queixas por barulho. Curiosamente, é também um dos poucos lugares onde o controle parece ter surtido efeito, após a proibição de música depois das 22h na orla. O quiosque Juannas até inovou, criando a Festa do Silêncio, em que os clientes recebem fones de ouvido para escutar o DJ depois das 10 da noite. Uma forma bem-humorada de manter o espírito festivo sem incomodar a vizinhança.
![Veja Rio [2953] box pg 21 b Top 10: os bairros campeões de queixas por perturbação do sossego](https://beta-develop.vejario.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/07/Veja-Rio-2953-box-pg-21-b.jpg?quality=70&strip=info&w=650)
Os donos de bares e restaurantes defendem que transformar uma metrópole com 7 milhões de habitantes e mais de 18 000 estabelecimentos comerciais em um oásis de silêncio é missão quase impossível. “De forma mais objetiva e menos legalista, o Rio é conhecido e valorizado internacionalmente pela alegria. Faz parte do nosso soft power. Não se pode fazer uma caça às bruxas e atacar as características mais preciosas da cidade”, acredita Fernando Blower, presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes (SindRio). A Organização Mundial da Saúde (OMS) informa que a poluição sonora pode produzir efeitos adversos como estresse, perturbação do sono e dificuldades na aprendizagem, e por isso vem sendo tratada como um problema de saúde pública no mundo todo. Na lista das dez cidades mais barulhentas do mundo, Nova York recorreu à tecnologia para mitigar o problema. Projetos inovadores, como o SONYC, utilizam redes de sensores que monitoraram e analisam os níveis de ruído em tempo real, auxiliando na identificação de fontes de barulho e no desenvolvimento de soluções mais eficazes.
![Veja Rio [2953] box pg 21 a Central de atendimento: número de queixas de barulho teve aumento de 21%](https://beta-develop.vejario.abril.com.br/wp-content/uploads/2025/07/Veja-Rio-2953-box-pg-21-a.jpg?quality=70&strip=info&w=650)
No caso do Rio, uma das peculiaridades da arquitetura da cidade é a grande quantidade de prédios com estabelecimentos comerciais no térreo, fazendo dessa convivência um desafio diário. “Ainda tem questões climáticas, que acentuam o problema. Em dias mais úmidos, por exemplo, o som pode parecer mais alto devido à velocidade de propagação ser ligeiramente maior no ar úmido em comparação com o ar seco”, explica o engenheiro de áudio Luciano Costa. Para ele, porém, não se trata de uma cidade barulhenta por natureza, mas de escolhas acústicas malfeitas. “Muitos estabelecimentos não investem nisso ou até mesmo projetam o som para que ele vaze para a rua, para atrair mais clientes”, diz. Um dos encantos do Rio é a informalidade, é verdade. Mas ela não pode ser confundida com desrespeito. Muito menos ser protegida quando fere a lei. Afinal, respeito é bom e todo mundo gosta — ainda mais bem embaixo da própria janela.