Maratona do Rio mostra por que a corrida de rua virou reduto de ex-atletas
Com disciplina de sobra e base física de elite, ex-jogadores de futebol e medalhistas olímpicos trocam a pressão do alto rendimento pelas corridas de rua

A cada edição da Maratona do Rio, o asfalto carioca mostra que ali há espaço para todos: elite, veteranos, corredores por prazer ou por pace. Nessa última edição, me chamou a atenção encontrar, em meio à multidão, ex-atletas redescobrindo o prazer de competir.
Mas por que será que esses campeões acostumados a torcida, troféus, fãs, escolheram a corrida de rua como novo refúgio? O que empurra alguém que já ganhou tudo a acordar de madrugada para correr como anônimo, tipo gente como a gente, só por amor?
“A resposta é simples e, ao mesmo tempo, complexa”, opina Flávia Magalhães, médica do esporte que acompanha a Maratona do Rio desde 2009. “A base física está ali: são anos de coração treinado, músculos adaptados, disciplina mental. Mas o que fica, quando acaba a carreira, é a cabeça que não sabe parar”.
‘A corrida devolve a meta diária, o ritual, o desafio, sem precisar de torcida nem contrato”.
Flávia Magalhães, médica do esporte e na Maratona do Rio desde 2009
A ciência, no entanto, não é negociável. Flávia faz questão de lembrar que recomeçar não significa ignorar cuidados. “São atletas acostumados à dor, treino pesado, rotina disciplinada. Mas é aí que mora o risco. O futebol é intermitente; a corrida é repetição. O impacto cobra. O corpo que corria atrás da bola precisa aprender a correr atrás de si mesmo. E continua precisando de avaliação médica, fortalecimento, mobilidade, acompanhamento de um bom técnico de corrida. A assessoria ajusta postura, volume, corrige vícios. Sem isso, a conta vem: joelho, quadril, tornozelo, tudo cobra”.
O ex-jogador de futebol André Felipe, mais conhecido como André Balada, traduz bem essa virada. Depois de duas décadas de gramados e muitos gols, o ex-atacante que fez história em clubes como Santos, Corinthians, Atlético-MG e Vasco, e hoje é presidente do Cabofriense, foi visto nos pelotões da Meia Maratona como se fosse um iniciante. André decidiu correr os 21km em dezembro do ano passado, treinou e superou sua meta, completando a prova abaixo do tempo que havia almejado: 1h44m58, um pace de 4:56/km.

“Eu precisava de um desafio novo. Meus amigos me puxaram para a comunidade da corrida, e não parei mais. Aqui, todo mundo se apoia e se ajuda“, conta. Ele só não esconde que a zoeira virou rotina entre os amigos do futebol: “Jogador odeia correr, só quer bola. Todo mundo me zoa. Mas depois que me veem chegando, acham irado”.
“Quando decidi fazer uma prova, sabia que tinha que ser no Rio. Na largada, parecia que estava em estreia de campeonato. O mais difícil é segurar a empolgação: futebol é explosão, e a corrida me obrigou a ter paciência. Se sair no gás, quebra no meio”.
André Balada, ex-jogador de futebol
Se, nas pistas, o ex-camisa 9 reaprende a respeitar o próprio ritmo, do outro lado do percurso Sheilla Castro, bicampeã olímpica no vôlei, mostra que a medalha ganhou um significado diferente. Ela aceitou o convite para correr 10 km na Maratona do Rio e se divertiu do início ao fim, postando cada momento em seu Instagram.

A medalha veio para ser dividida com quem importa: “Minhas filhas queriam a medalha mais do que eu. Hoje corro para ter saúde, para estar aqui por muito tempo. E isso aqui vale mais que qualquer pódio”, garante a mãe de Liz e Nina, de 6 anos.
“Sempre flertei com a corrida, mas nunca levei tão a sério. Faço yoga, musculação, mas correr é outra entrega. É individual, mas tão coletiva. Você passa e ouve gente que nunca te viu gritando teu nome, empurrando pra frente. O Rio faz isso ser ainda mais especial”.
Sheilla Castro, bicampeã olímpica de vôlei
Mas o corpo aguenta? Para o fisioterapeuta esportivo Rodolfo Parreira, da Sociedade Nacional de Fisioterapia Esportiva (Sonafe Brasil), a resposta é: sim, se respeitar as regras do novo jogo. “Futebol tem explosão, mudança de direção, grama amortecendo impacto. O asfalto não perdoa. Joelho, tornozelo, quadril, tudo cobra. A memória muscular ajuda, mas não faz milagre”, completa.
“A base atlética existe. Mas o corpo não é o mesmo. É bonito ver ex-atleta querer continuar. Mas é mais bonito ainda quando faz isso com responsabilidade”.
Rodolfo Parreira, da Sociedade Nacional de Fisioterapia Esportiva (Sonafe Brasil)
Rodolfo ressalta ainda que há mais um detalhe que muitos ignoram: o ego de quem já foi elite e não aceita ser iniciante de novo. “O atleta profissional carrega um motor pronto, o tal ‘coração de elite’. Mas se engana quem pensa que isso elimina as etapas. É comum ver ex-jogador ignorando sinais de sobrecarga, forçando ritmo que o corpo não aguenta mais. E aí a corrida pode virar frustração. O acompanhamento técnico, a planilha, a fisioterapia, tudo isso que fizeram na carreira precisa existir de novo. Só muda o uniforme”, conclui.