A volta da Viúva perdida de Arthur Azevedo
O diretor fala da versão inédita de A Viúva Alegre com tradução escrita por Arthur Azevedo que estréia em abril no Municipal, homenageando Carmen Miranda

Esta é a história de uma valsa perdida. Como uma boa dança, tem seus movimentos circulares e inesperados. No próximo dia 17 de Abril, quando subir à cena do Theatro Municipal do Rio de Janeiro a opereta A Viúva Alegre, de Franz Lehár, estaremos celebrando 3 aniversários e um achado histórico: os 120 anos de estreia da famosíssima opereta vienense, os 70 anos de falecimento de Carmen Miranda e a redescoberta da versão brasileira do texto cantado, escrita por Arthur Azevedo — ele que, em 2025, comemora 170 anos. Mas, vamos por etapas pois essa é uma história bem carioca, dos tempos de ‘capital cultural.
No final do ano passado, em meio ao mais do que bem-vindo retorno do Festival Ópera na Tela para animar as noites do Parque Lage e coincidindo com as últimas récitas de Rusalka no Municipal, segui uma pista que me levou até a Casa de Rui Barbosa, em Botafogo. Já há muitos anos eu tinha curiosidade de procurar uma tradução da opereta A Viúva Alegre que, dizia-se, o escritor Arthur Azevedo havia publicado pouco antes de morrer, em 1908. A obra original, em alemão, havia estreado em 1905 e com enorme sucesso; não levou muito tempo para que a obra fosse traduzida para outros idiomas, notadamente o francês. No Brasil, há várias décadas que a opereta era sempre cantada na divertida tradução do mestre Millôr Fernandes, feita com todo cuidado e humor que lhe eram característicos. Só que Arthur Azevedo, além de grande dramaturgo e autor de deliciosas versões brasileiras das operetas de Offenbach foi um dos maiores responsáveis pela campanha de construção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro —que só acabou sendo inaugurado em1909, cerca de meio ano após sua morte. Onde andaria a Viúva ‘perdida’ de Arthur Azevedo? A maior esperança da existência de uma cópia do texto era a nota que aparecia num dos vários tomos do Teatro Completo de Arthur Azevedo publicados em 1983 pelo defunto (e saudoso) INACEM, na qual a publicação do texto era citada. Não sou Monsieur Poirot ou Sherlock Holmes mas depois de anos fuçando os arquivos da Biblioteca Nacional atrás da história da ópera nacional brasileira, e isso numa época em que o pesquisador tinha de ler os microfilmes das edições diárias dos vários jornais do século XIX, acredito em milagres e teimosia. Munido de grandes doses dessa última baixei na Casa de Rui Barbosa, que me atendeu de maneira esplêndida. Lá, carinhosamente guardado num cofre de obras raras, estava um programa de sala do Theatro Apollo, datado à mão “11 de Julho de 1909”, em que havia sido reproduzido o texto das partes cantadas de A Viúva Alegre na “tradução de Arthur Azevedo”.
Operetas são as avós dos musicais americanos, tão populares em nossos dias. E assim eu descrevo o parentesco pois, além das temáticas predominantemente alegres, cómicas, e de final feliz, são uma forma de ópera em que números musicais são intercalados de uma parte falada bastante importante e mesmo extensa. Era aí, aliás, o calcanhar de Aquiles da minha descoberta: o bendito programa de sala só trazia a parte que era cantada. Embora seja esse o trabalho mais difícil, demandando rimas e um texto que consiga mais ou menos encaixar-se na música, a tradução da parte falada está longe de ser algo menor ou desprezível. Há muito texto. E foi somente porque o Theatro Municipal do Rio de Janeiro abraçou a idéia de encenar a Viúva Alegre e me convidou para dirigir o espetáculo que enfrentei o desafio de desencravar uma cópia dos diálogos originais de 1905, em alemão, e traduzi-los. Finalmente, a cereja no bolo foi encaixar todo o trabalho de Azevedo na partitura, corrigindo a métrica e, por vezes, suprindo, partes que faltavam. Com o perdão (e, espero, as bençãos) do grande Millôr, figura gentilíssima que conheci num distante 1992 num curso de teatro no Ziembinsky, peço passagem para a tradução do velho Arthur, nascido em julho de 1855, há quase 170 anos.
Mas a coisa toda não para por aí. Acontece que essa não será minha primeira montagem de A Viúva Alegre: essa genial opereta cruzou minha vida bem no meio da pandemia, com direito a 10 dias de quarentena para me recuperar do COVID, e isso em plena Estônia. Talin pode ser uma das capitais mais charmosas da Europa mas não recomendo ficar isolado mais de uma semana num apartamento e, muito menos, encenar uma opereta em estoniano — sim, lá como aqui, as operetas são no idioma do país e esse ‘detalhe’ eu só soube depois do contrato assinado. Bom, a verdade é que eu gosto de desafios e para me ‘vingar’ do tanto e aulas de estoniano que tive de fazer propus ao teatro de fazer uma versão em que o fictício pais de Pontevedro da história original, ao invés de ficar nos Bálcãs, seria uma imaginária república latino-americana, e que a viúva Hanna Glawari seria moldada em nossa luso-carioquíssima….Carmen Miranda. E foi assim que a pequena notável caiu, dessa vez não no samba, mas sim na opereta. Para o cúmulo das coincidências, Carmen Miranda faleceu em 1955 e, portanto, o ano de 2025 marca os 70 anos de sua morte.
Carmen, Arthur, a estréia da Viúva em 1905 e a redescoberta desse libreto. Eis a receita para uma grande festa para abrir a temporada lírica do Municipal do Rio ao m melhor sabor de Cidade Maravilhosa. A temporada, com patrocínio de Petrobras, começa dia 17 de abril e segue até o 27, com coro e orquestra do Theatro Municipal sob a regência do maestro Felipe Prazeres recebendo em sua casa, junto a um grande elenco, Gabriella Pace & Tati Heléne no papel-título.
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Falar de todas estas coisas que estão, direta ou indiretamente, associadas ao que o Rio de Janeiro foi e até hoje representa, me leva sempre a pensar em como o Festival Ópera na Tela — ou mesmo a ópera Rusalka, que era inédita no Rio — fala da vocação da cidade para descobertas culturais, vanguarda e aposta em coisas originais. Logicamente, numa cidade em que mesmo os títulos mais populares às vezes custam mais de uma década para serem reapresentados (a própria Viúva não é feita há uma década), o enorme sucesso da volta do balé O Quebra Nozes não pode passar em branco; merecia uma crônica do Dito Erudito por si só pois o quarteirão do Municipal viu filas para compra de ingressos que começavam cedo e davam voltas. A fidelidade do público carioca ao balé clássico é algo digno de nota, e explica porque a cidade tem ainda hoje a mais importante cia. de balé clássico do Brasil e é um dos grandes polos de dança contemporânea do país. Por outro lado, o resgate de obras que mereciam ter a chance de ser escutadas está no DNA da cidade. E vale muito celebrar que igualmente em 2024 o portal Música Brasilis completava 15 anos. Trata-se um projeto que é baseado aqui no Rio de Janeiro e que é dedicado justamente ao resgate e difusão de repertório brasileiro, de todos os tempos, gêneros e regiões do país. Muitos aplausos a cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte, ao Instituto Cultural Vale e ao BNDES que com seus apoios possibilitaram uma verdadeira diversidade com, indiretamente, o acesso de todos a todos os gêneros de música brasileira, disponibilizados gratuitamente.
Com tanta história, é preciso acreditar que o Rio de Janeiro tem uma grande vocação para o futuro. Quem sabe todas essas coisas bacanas que estão acontecendo (e também no campo do teatro e do cinema e dos shows) não inspirem patrocinadores para que, num futuro próximo, a cidade ganhe um Festival de Ópera e Dança ou, melhor ainda, um Festival de TODAS as Artes Cénicas? É difícil de compreender que numa cidade com tantos turistas entre dezembro e março, grande parte da programação cultural entre em ‘pausa’ durante o verão. Da mesma forma, com o tipo de inverno delicioso que temos, muito mais poderia acontecer para atrair mais turistas para cidade. Uma boa notícia nesse sentido é que o Festival Pianissimo terá sua segunda edição no Teatro do Copacabana Palace a partir de 15 de abril, este ano com a participação, entre outros, do pianista Konstantin Emelyanov, que vem pela primeira vez ao Brasil.
Esperamos vocês, leitores, no Theatro Municipal em plena Semana Santa!
André Heller-Lopes
Encenador e especialista em óperas, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio,
é Professor da Escola de Música da UFRJ.