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André Heller-Lopes

Por André Heller-Lopes, diretor de ópera Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
A volta do Dito Erudito
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Arte manipulada, arte decapitada

O diretor comenta a nova Aida em Paris, com bonecos e cantores. Uma descolonização da ópera ou uma ocupação do que não precisa ser ocupado?

Por André Heller-Lopes Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 fev 2021, 10h58 - Publicado em 26 fev 2021, 20h12
Aida - Opéra Bastille 2021
Aida - Opéra Bastille 2021 (opera de paris/Divulgação)
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Estreou há alguns dias, por streaming e com grande escândalo, uma nova produção da grande ópera de Verdi que é Aida. O palco não poderia ser mais célebre: a Opéra Bastille de Paris. Depois de greves e cancelamentos que vêm ameaçando o funcionamento da casa desde fins de 2019, antes da pandemia suspender (quase) todas as atividades, Aida chegou às telas, gravada sem público. Se por um lado a internet não substitui a energia trocada entre artistas e uma platéia presencial, faz com que a mágica do teatro aconteça. A arte negocia sua sobrevida em ininterruptos ciclos de crise financeira e encenar um título como Aida  é sempre um símbolo de resistência, ainda mais em nossos dias onde os desafios foram potencializados pela pandemia. É essencial continuar lutando para impedir que espaços destinados às óperas, aos concertos ou à dança fiquem sem sua programação e  deixem de cumprir sua missão junto à sociedade. Aida é uma batalha artística e educativa; um tributo ao conceito de “no culture, no future”.

O que é “uma Aida”, e quais seus problemas ou desafios e o que faz dela especial? Bom, a ópera passa-se no Egito, entre campanhas militares. Só esses dois elementos já garantiriam a presença de pirâmides, camelos, soldados e toda uma custosa turba cênica. Adicione-se à conta, partes dificílimas de serem cantadas (ou seja, cantores difíceis de se achar em qualquer canto e, por isso mesmo, caros), grande coro, orquestra e até um balé. Isso sem falar nas questões da cena moderna, que vão desde toda sorte de tecnologia até a espinhosa questão do “black face” (Aida, seu pai e todos os guerreiros que os seguem são, afinal de contas, etíopes) que demandam que sejam artistas de ascendência africana a serem escalados para estes papéis. O mesmo ‘problema’ que ronda em nossos dias produções de Otello, seja de Shakespeare ou Verdi. Madame Butterfly já tem escutado o canto dos que querem impor artistas de origem oriental no papel-título. Mas eu divago, voltemos.

Minha própria experiência com Aida, que dirigi na Alemanha em 2019, foi cheia dessa complexa negociação com todas essas exigências. Por sorte, tinha um soprano afro-americano (Michelle Bradley, deslumbrante) como protagonista e um barítono sul-africano como seu pai. O Rei era coreano, o sacerdote vinha da Geórgia, a filha do faraó, da República Tcheca, e o tenor protagonista era russo; curiosamente, ninguém parece demandar que os antagonistas de Aida, egípcios, sejam de uma particular etnia. Nos cenários, tive a imensa sorte de ter uma solução genial que evitava o kitsch das pirâmides; os figurinos tentavam uma negociação entre o clássico e o contemporâneo — e as sandálias foram questionadas pelos que esperavam algo mais ‘fashion’ (o que deveriam usar no Egito, sandálias plataformas no melhor estilo Carmen Miranda?). Porém, se tive sorte e sucesso com essas armadilhas e o balé foi gentilmente cortado pelo maestro, as múltiplas divisões do coro provaram ser bem problemáticas. Acontece que na famosa ‘Cena do Triunfo’ o coro divide-se não somente em vários grupos de egípcios, que as vezes respondem uns aos outros, como ainda têm de, lá pela metade do ato, representar um grupo de prisioneiros etíopes. Quando você tem à disposição uma centena de artistas no coro, é fácil separar uma dúzia para entrar especificamente nesta cena…porém, se o coro à disposição for apenas de um tamanho padrão (cerca de 60 vozes), isso significará que, em algum momento, um grupo terá de sair de cena, discretamente (nunca acontece), e trocar de roupa e maquiagem para, poucos minutos depois, retornar como guerreiros etíopes. Mais, não conto; comento apenas que maquiar em tempo recorde uma dúzia de alvos alemães para virarem etíopes, é para os fortes de coração e míopes de visão. Ainda tenho pesadelos com aquele exército dos Flintstones.

De volta à cidade luz, não é preciso dizer que lá a realidade é outra. A grande ópera de Verdi tinha em sua defesa as forças musicais e vocais da Opéra de Paris e seu balé. “Last but not least” tinha um elenco de cantores absolutamente de primeira linha. Porém, também tinha a “obrigação” de encontrar um conceito novo, uma forma de encenar a ópera que atendesse à todas as expectativas da encenação contemporânea. O conceito achado pela jovem diretora foi o de, através de Aida, “discutir o colonialismo”. Não cabe aqui fazer a crítica do espetáculo; não é meu ofício nem a proposta desta coluna: quem desejar, conseguirá assistir ao espetáculo na internet e daí poderá tirar suas conclusões. Novas idéias por vezes ajudam a quebrar barreiras, é verdade. Basta pensar que os musicais, hoje tão populares, são netos das operetas. A visão certamente agradará várias pessoas, ao mesmo tempo que a opção da encenadora por ter a protagonista, seu pai e os guerreiros representados por bonecos manipulados — uns sem pernas e outros aos pedaços — com os cantores cantando atrás, causará a fúria de outras dezenas. Estará, assim, consumado o “succès de escandale”, que garante fama pela controvérsia.

A impressão desta estréia é de que a ópera foi decapitada — e quando as idéias não têm pé nem cabeça, o corpo da obra cai. E com ele sua alma. Num recente anúncio, um cartão de crédito resolveu mostrar um jovem artista do funk cujo sonho de se apresentar no palco de um grande teatro histórico seria realizado graças ao seu patrocínio. Nada mais interessante que imaginar que os ‘Municipais’ do Brasil são ainda esse ‘palco-máximo’, objeto de sonho. Seria ainda mais legal, se o cartão pensasse na recíproca: patrocinar o sonho de orquestras, companhias de dança ou de artistas líricos de levar sua Arte às comunidades, aos espaços do funk, às praias, aos estádios de futebol, florestas e onde mais a imaginação quiser. E seria lindo se o jovem com seu funk chegasse não num teatro aparentemente fechado, às escuras e que, vazio, precisa ser ocupado. Qualquer um que acompanhe a variada programação dos teatros monumento do Brasil, sabe que eles são em verdade espaços abertos, vivos, cheio de cores e vibrantes. Nesse dia em que o jovem entrar no teatro que lhe pertence, sem cerimonias, nesses lugares ideais — únicos — que temos para ouvir acima de tudo música clássica, assistir ópera e balé, a cor incluirá não somente um lindo AmarElo como também todo um arco-íris de cultura.

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André Heller-Lopes,
Encenador e especialista em ópera, duas vezes Diretor Artístico do Municipal do Rio, é Professor da Escola de Música da UFRJ.

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