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Cristiana Beltrão

Por Cristiana Beltrão, restauratrice e pesquisadora de gastronomia e alimentação Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Três dias em Paraty

A cultura caiçara e seus ensinamentos

Por Cristiana Beltrão Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 dez 2020, 08h13 - Publicado em 16 dez 2020, 20h56
Paraty
Paraty (Cristiana Beltrão/Arquivo pessoal)
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Parada na minúscula calçada de pedra – que deve ter sido imensa um dia – olhei para a cidade tranquila, congelada no tempo, e me dei conta de que o mundo precisava rodar mais devagar.

Não fosse a estagnação do porto de Paraty durante o século XIX e o desenvolvimento em marcha lentíssima que se seguiu, talvez a cidade não preservasse um de seus traços mais marcantes. Não, não falo do centro histórico. Falo da rica cultura caiçara.

Caiçara é um roceiro à beira do mar, uma espécie de caipira da orla, profundo entendedor do seu habitat.

Entre, por exemplo, num restaurante qualquer em Paraty e verá que o discurso do garçom é outro. O sujeito falará sobre a beleza da tainha, quando na época, e dará detalhes sobre cavala, pescada, corvina, garoupa ou sororoca, como você nunca viu. Como a cidade tem uma das maiores diversidades de moluscos da nossa costa, a aula ainda pode continuar com notícias da vida das lulas, polvos, mariscos e ostras. Decerto aprendeu com um vizinho, parente ou amigo caiçara.

Quase toda a descarga de pescado no município vem da pesca artesanal. Não há grandes navios, redes potentes, geringonças ou milhares de anzóis. Com exceção do camarão, que quase sempre é de arrasto (uma pena), o que se tira do mar de Paraty é fresco e tem baixo impacto ambiental.

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Mas o caiçara também olha para a terra. Faz roçada florestal e usa plantas para qualquer coisa: remédio, construção da casa ou montagem de canoa, prestando especial atenção às fases da lua para cortar a árvore no momento certo.

Voltei à cidade porque queria viajar no meu aniversário sem o estresse de ter de visitar novas coisas. Escolhi um destino que adoro, com um dos menores índices de transmissão de Covid do Estado do Rio, e fui bem no meio da semana pra aumentar a chance de não encontrar ninguém. Se tudo desse errado, entornaria uma “marvada” pra esquecer. Batata… Choveu muito naqueles três dias e me agarrei em Maria Izabel, a única cachaça da região que ainda é feita à moda antiga, com fermento produzido na própria fazenda. Foi bonito, o nosso amor.

Entre um pingo e uma pinga, rondei a cidade.

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Meu primeiro momento de felicidade veio do perfume do café fresco que me fisgou numa esquina. Pela porta colorida, avistei um torrador de 5kg e um V-60. Te amo, Paraty! Era o Montañita Cafés Especiais, casa de Nerita e seu marido equatoriano, Juan, que fazem procuram bons produtores e grãos ali por perto, na Mantiqueira. Um trabalho lento que vem rendendo reconhecimento.

Os cardápios da cidade, de um modo geral, refletem a produção do município. Comi robalo com banana-da-terra até não poder mais (um clássico paratiense), mandioca de todas as formas (especialmente a farinha torrada em forno de cobre, como manda a tradição) e cana-de-açúcar e seus subprodutos (o delicioso “mel de engenho” ou um bolo que leva melado, chamado manuê de bacia).

Um dos projetos mais lindos da região é a Fazenda Bananal, com suas 10.000 mudas plantadas de 50 espécies diferentes, numa área de 11 hectares de agrofloresta produtiva. Tudo está aberto à visitação, inclusive a horta de 5.000m2, o pomar, os animais (vacas, cabras e aves) e a queijaria. Ali, tudo é agroecológico.

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A colheita da manhã abastece o excelente restaurante da fazenda, que fica ao lado de um casarão restaurado, do século XVII, e também recheia a cozinha do Quintal das Letras, restaurante da Pousada Literária, dos mesmos donos. Folhas, ovos, queijos e legumes brilham sozinhos, de tão frescos. É a produção local na sua melhor versão: em pratos criativos, mas sem invencionice.

Se o assunto é cozinha de raiz, bom mesmo é visitar o quilombo do Campinho da Independência, a 20km de Paraty [agora, com horários reduzidos], onde o prato de resistência é feito do peixe assado em folha de bananeira com angu à “baiano” – nome da folha que tempera a farinha de milho, que lembra um espinafre e também é chamada de assa-peixe. Desde minha última visita, há tempos, o espaço foi tocado pelo dedo mágico da arquiteta e amiga Bel Lobo, e renasceu sem perder a identidade.

Excelente também é o restaurante Banana da Terra, cheio de preparações e ingredientes locais, boa carta de vinhos e o melhor serviço da cidade. E, ainda, o tradicional do Hiltinho, na Ilha do Algodão, com o melhor dos frutos do mar.

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A comida é parte indissociável da cultura de Paraty ou de qualquer lugar.

Me bate uma profunda tristeza quando visito uma cidade turística e percebo que 90% de sua oferta gastronômica é uma mistura confusa daquela cozinha “internacional”, sem identidade. São cardápios que começam com algo como salada caprese e tartare de salmão, passam pelo filet com azeite trufado, e terminam com qualquer coisa ao molho thai.

Eu pergunto: em que Estado longínquo pastam as búfalas que emprestam o leite para a mozzarela? De que fazenda marinha distante terá vindo aquele salmão? Quem já viu um tartufaio no Brasil?

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Nada contra cozinhas estrangeiras, até porque o morador precisa variar a dieta, mas a que serve o viajante encontrar cardápios recheados de pratos pasteurizados, com ingredientes de estados ou países distantes? De que vale usar insumos que não empregam ninguém por perto, que encarecem preços e tiram da cidade a oportunidade de virar um destino único? De que valem cidades turísticas onde ninguém sabe o que é típico ou original, num momento em que o brasileiro vai rodar o Brasil? Ninguém quer cruzar metade do país para comer outra salada caesar.

Pense nisso.

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