Rosa Magalhães e o olhar da infância
Espetáculo revisita desfile da artista para a Imperatriz em 2005 e mostra a força de seus enredos
No dia da morte da artista e carnavalesca Rosa Magalhães, o comentarista Milton Cunha gravou um emocionado depoimento em suas redes sociais, em que lembrava um episódio vivido com a amiga em Campos. Os dois haviam sido convidados para um evento na cidade do interior fluminense e, em dado momento, Rosa simplesmente desapareceu. Descobriu-se depois que ela tinha ido rever a casa onde tinha vivido por um tempo quando criança.
“Foi bonito perceber que a grande dama, a diva, queria reencontrar a menina que havia sido”, lembrou Milton.
Não é exatamente o que fazemos ou deveríamos fazer ao longo da vida, honrar a criança que um dia fomos? “Olhamos para o mundo uma única vez, na infância./O resto é memória”, escreveu a escritora nova iorquina Louise Glück, vencedora do Nobel de Literatura em 2020.
Exatos três meses depois da partida de Rosa, no último dia 25 de julho, a peça Sonho encantado de cordel, em cartaz em São Paulo, se debruça sobre a obra da carnavalesca e reforça a sensação de que sua brilhante obra para os desfiles das escolas de samba foi o tempo inteiro alimentada pela “menina que ela havia sido”.
A fabulação é condição para o amadurecimento e a construção de identidade. Um processo dialético, pêndulo que rompe com as raízes e ao mesmo tempo reafirma esta origem nutridora.
O espetáculo musical parte do enredo Uma delirante confusão fabulística, criado por Rosa para a Imperatriz Leopoldinense em 2005. Adaptada e dirigida por Thereza Falcão, com interlocução da artista em todo o processo de concepção. Ela também chegou a dar um primeiro tratamento aos figurinos. O artista e carnavalesco Mauro Leite, que foi parceiro de Rosa em inúmeros trabalhos, acabou assinando a versão final de cenário e figurinos. Também amigos da artista, Alessandra Cadore e Batman Zavarese assinam, respectivamente, a assistência de cenário e figurino e o videocenário.
O projeto de Rosa para a Imperatriz transformava os personagens de Monteiro Lobato em anfitriões de criaturas anderserianas como o Soldadinho de Chumbo ou a Pequena Sereia. Na adaptação de Thereza, há uma mudança de contexto, e as histórias do autor dinamarquês visitam o imaginário do Nordeste brasileiro.
A protagonista de Sonho encantado de cordel é uma menina que, desacreditada pela mãe, insiste que vai ser contadora de histórias. No texto original, ela se chamaria Maria, mas agora tem o nome de Rosa Cordelista e é vivida por Elizândra Sousa. Aline Wirley acumula os papéis da mãe da protagonista e da Rainha de Inverno. A escolha desta sobreposição de personagens nos presenteia com um fio de entendimento: a fabulação é condição para o amadurecimento e a construção de identidade. Um processo dialético, pêndulo que rompe com as raízes e ao mesmo tempo reafirma esta origem nutridora. Fabular é de fato redimensionar a mãe e a Rainha, o colo e o desafio, o terra e o exílio. Não por acaso, Rosa, grande fabuladora, encheu sua obra de viagens e jornadas.
Conhecer a abordagem teatral deste enredo específico me fez ter vontade de revisitar o acervo da artista preservado pela Biblioteca Sirius, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Uerj. A pasta sobre o desfile de 2005 nos proporciona um emocionado reencontro com croquis de figurinos, mas também com preciosidades como os estudos da artista para as ilustrações de páginas de livro no carro abre-alas e elementos de outras alegorias.
Viagens para o lado de fora e para o lado de dentro
Em A antropofagia de Rosa Magalhães (Carnavalize), livro baseado em sua tese de doutoramento pela Faculdade de Letras da UFRJ, Leonardo Bora destaca a capacidade narrativa e subversiva de Rosa, chamando a atenção para a reincidência da figura do navio, vetor de odisseias literárias, em seus desfiles. O artista, que ao lado de Gabriel Haddad forma uma dupla de grandes tecedores de enredos, enfatiza a “deglutição” de Rosa de imaginários nacionais e sua força como pensadora de muitos brasis.
Bora dá especial atenção às aproximações da artista com as mitologias e as culturas originárias e à subversão narrativa e de representação dos indígenas nos desfiles. No capítulo “O índio e o alaúde; Macunaíma com Flash Gordon”, ele escreve:
“Os símbolos se transformam: o índio pode passar de bom selvagem a anarquista canibal em uma mesma narrativa; a cara do Brasil (…) oscila, embriagada de cachaça — pode ser o índio, a mulher, o Rei Momo. A artista (usando lentes europeias e brasileiras, coloniais, imperiais e republicanas, contemporâneas todas — se entendermos, como Felipe Ferreira, que a pós-modernidade alberga a multiplicidade de visões, reprocessa (…) um imaginário que apenas superficialmente se mostra equilibrado e crivado de ‘verdade’”.
Neste breve texto, nascido nos arquivos mascates e randômicos da internet, registro um primeiro passo, lampejo ou semente de um futuro mergulho mais profundo no legado plástico e discursivo de Rosa. A partir da “dobra” que Sonho encantado de cordel faz em sua obra e das lembranças do desfile de 2005, consegui enxergar, envolta pelas brumas que sempre vão cobrir os percursos da crítica e da pesquisa, aquela menina a que se referiu Milton; aquela Rosa narradora, aranha fiandeira de tantas teias.
Cordelista ou grega, modernista ou armorial, ela parece ter sido alimentada pela garota que nasceu filha do poeta e memorialista Raimundo Magalhães Júnior, integrante da Academia Brasileira de Letras e jurado do primeiro desfile de escola de samba, e da escritora e dramaturga Lúcia Benedetti, pioneiríssima colunista da imprensa e do teatro infantil brasileiros.
Se Rosa viajou o mundo e conheceu o Brasil através dos livros e das conversas com o pai, também ocupou um lugar privilegiado na plateia dos espetáculos da mãe, caso do paradigmático O casaco encantado, escrito por Lúcia em 1948, um ano depois do nascimento de sua filha única.
Rosa soube descobrir a epifania nas bordas menos visitadas das histórias, como se elas fossem as iniciáticas florestas nas quais os personagens infantis frequentemente penetram.
A antropofagia destacada por Bora pode ser entendida como resposta a essa nutrição intelectual moderna recebida das atividades, viagens e amizades paternas, que ela reprocessaria a seu modo. Já a herança da mãe talvez seja a capacidade que Rosa sempre teve de perceber um encantamento das coisas do mundo. Rosa soube descobrir a epifania nas bordas menos visitadas das histórias, como se elas fossem as iniciáticas florestas nas quais os personagens infantis frequentemente penetram. Mais do que citar a ópera e o teatro em seus desfiles, Rosa insistiu em fazer teatro, em ser irrigada por uma encenação elíptica de seus enredos, e nesta teatralidade talvez resida uma das fontes do barroquismo tão pujante de sua visualidade.
Os navios reincidentes em suas alegorias que apontam para a literatura, também parecem afirmar, metalinguísticamente, que enredo é um fazer literário. Os livros, por sua vez, parecem ser os veículos através dos quais Rosa viaja para o lado de dentro.
Vêm deles a bússola e a correnteza para orientar e movimentar todo o desfile e foi justamente por dominar tão bem esse repertório que Rosa foi uma artista tão gigantesca, uma das maiores que o Brasil já teve. A menina que ousou reler as histórias aprendidas na infância, embaralhando-as para que fossem ainda mais suas, foi Ariadne, griô e feiticeira. Foi ainda pirata e jardineira, hackeando antigos discursos e semeando novos sentidos para o desenvolvimento dos desfiles como linguagem.
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Sonho encantado de cordel conta com canções originais de Paulinho Moska, Chico César e Zeca Baleiro e fica em cartaz em São Paulo até o dia 3 de novembro. O musical estreia no Rio no primeiro semestre de 2025.