Ágatha, Rayssa e o necessário equilíbrio entre competir e brincar
Para professora de Psicologia, preservação da saúde mental dos atletas implica revisão do ideal de perfeição cobrado na mídia, inclusive nas redes digitais
Os Jogos de Tóquio batem o recorde de cornetadas virtuais. Em meio às dores e delícias da apoteose esportiva atrofiada pelo vírus, mergulhamos numa incansável corrida de 100 metros rasos. Um mundo de Bolts online.
Redes sociais transformam-se num Olimpo de opiniões automáticas. Esquivar-se de comentar o erro, a vitória ou o choro da vez pode custar um exílio das vitrines digitais. Um desembarque do reconhecimento lavrado na hiperexposição contemporânea.
Desdobrada por uma infinidade de mídias, a Olimpíada alimenta a compulsão em opinar, devassar, desabafar. Dos bastidores compartilhados com irreverência por Douglas, craque do vôlei e das redes online, ao enxame de pitacos sobre julgamentos polêmicos no surfe, skate, judô, as arquibancadas digitais incorporam-se profundamente à mitologia olímpica. Reformulam histórias, perspectivas, negócios.
Para torcedores, representam canais de expressão autônomos. Propiciam a chance de se comunicarem diretamente com ídolos, como fizeram as mensagens solidárias ao surfista Gabriel Medina, à judoca Maria Portela e à ginasta Simone Biles.
Nem sempre a oportunidade configura-se afetuosa, sequer respeitosa. As brumas da coletividade online não raramente encorajam indelicadeza, intransigência, agressividade. Freud cantou a pedra há um século, em “Psicologia das massas e análise do eu”.
Aos atletas midiatizados, a permanente olimpíada digital aumenta a visibilidade, a quantidade de fãs, a receita. Os 260 milhões de seguidores no Instagram rendem a Cristiano Ronaldo, por exemplo, um faturamento publicitário superior a R$ 1,5 bilhão por ano.
Para o empresariado, a performance online já se insinua tão importante quanto a esportiva. Indispensável combustível de engajamento ao consumo. Por isso postagens são profissionalizadas sob a batuta do marketing.
“Mas deve-se respeitar a liberdade de expressão, consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, ressalvou o professor de gestão esportiva Felipe Ximenes, num papo com jornalista Christian Baeta, apresentador do Resenha de Primeira. Ele observa:
“Estamos ainda amadurecendo o uso das mídias sociais, inclusive no esporte. Elas podem até influenciar o rendimento dos atletas. Muitos se sentem mais pressionados e ficam emocionalmente abalados, aumentando o risco de Burnout. Não devemos demonizar as mídias sociais, e sim aprender a lidar melhor com elas”, pondera Ximenes, também fundador da LFX 9011.
Síndrome de Burnout constitui um transtorno psíquico associado a estresse excessivo no trabalho. Corresponde a uma exaustão mental, emocional. Gera sensação de impotência e fadiga. Uma assombração recorrente a atletas embalados como super-heróis.
O tormento caminhava à margem dos holofotes até Simone Biles acusar o golpe e desistir do provável ouro na final da ginástica artística. Chegara ao limite. Nenhum pódio vale ultrapassá-lo, ensina a estrela.
Mesmo condicionado a pressões constantes, o esportista profissional não está a desgastes dos nervos. Tangenciam um limiar volta e meia camuflado por ambições econômicas. Naturaliza-se uma cultura do sacrifício sintetizada no lema “no pain, no gain” (sem dor, sem ganho).
Romantizado nos espetáculos esportivos, o traiçoeiro mantra da superação atlética esgarça limiares mentais e físicos. Às vezes nem o acompanhamento meticuloso de comissões técnicas multidisciplinares é suficiente para resguardá-los. A saúde pisa em ovos.
As mídias sociais apimentam esse caldeirão. Expandem a pressão por resultados expressivos. Intensificam provações dos limites emocionais.
“Precisamos repensar o ideal de performance. A desistência da ginasta americana desmistifica a imagem de perfeição física e mental atribuída a esses atletas maravilhosos. O gesto nos leva a refletir sobre a relação entre saúde, humanidade e o ideal de perfeição construído”, ressalta a professora da Psicologia da PUC-Rio Madalena Sapucaia. Ela completa:
“Simone Biles faz uma torção desse ideal. Mostra que somos todos humanos. Todos podemos atingir limites mentais. Doente é a sociedade que não aceita isso e impõe a perfeição ao outro. Simone dá um grande exemplo ao mundo, a partir da dor vivenciada. Ela humaniza a competição, cujo modelo de exigência representa, em certo sentido, uma violência, uma abertura à frustração, como se o sucesso dependesse do padrão de performance idealizado”. Touché.
A coragem de Biles lembra que craques não prescindem da eterna busca por equilíbrio. Cultivá-lo é ainda mais difícil sob o peso das guilhotinas digitais e das exigências sobre-humanas.
Ágatha e Duda conseguiram reencontrá-lo na terceira rodada do vôlei de praia. Recalibraram a corda antes que arrebentasse. “Baixamos o giro. Estar muito relaxada é ruim, mas estar muita concentrada também é ruim. Equilibramos melhor. Aí o jogo flui. Fica mais gostoso jogar”, comemorou Ágatha, depois da vitória sobre as canadenses Heather Bansley e Brandie Wilkerson.
Saúde mental e alto desempenho harmonizam-se na desafiadora rima entre o condicionamento extraordinário, inerente às pretensões esportivas, e a leveza de jogar, de se divertir. Como se quadras e pistas fossem quintais onde se redescobre a felicidade de brincar.
Aos 13 anos, Rayssa Leal fez de Tóquio seu quintal. Coisa de fada. Converteu a capital japonesa numa extensão das brincadeiras nas ruas maranhenses de Imperatriz. A prata reluziu essa curtição.
Simone, Ágatha, Rayssa reforçam talvez o principal recado dos Jogos: nesses tempos açoitados pelo Corona e pelo vírus do extremismo, urge resgatar o equilíbrio, a brincadeira e a empatia que nos unem, e deixam a vida mais gostosa.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.