Uma das 205 delegações olímpicas revelava-se especialmente simbólica. Reunia 29 refugiados de 11 países. Quase o triplo em relação à Rio 2016, quando a Olimpíada acolheu pela primeira vez um time sob a bandeira da maior crise humanitária desde a Segunda Guerra. Provavelmente estará maior daqui a três anos, em Paris.
A afegã Kimia Yousufi, porta-bandeira na abertura dos Jogos de Tóquio, deve juntar-se aos compatriotas Abdullah Sediqi e Nigara Shaheen. Sediqi é craque do tawekondo desde garoto. Conflitos armados o expeliram do Afeganistão em 2017. Radicou-se na Bélgica. Nigara virou judoca aos 11 anos, já no refúgio paquistanês.
Kimia reencontra o mesmo caminho. Arredou-se nesta semana para o Irã, onde nascera. Lá refugiaram-se seus pais em 1996. Fugiram do fundamentalismo talibã, que ora volta ao poder. Nenhum país é tão espinhoso às mulheres, aponta a Anistia Internacional.
Os 13 segundos e meio conquistados na capital japonesa renderam a Kimia o recorde nacional dos 100m rasos. Desde cedo ela empreende corrida ainda mais desgastante contra o tempo. O teimoso tempo do preconceito, do medo, da opressão, da violação aos direitos humanos.
Kimia volta a tombar para a multidão de retirantes contemporâneos. Beiram 83 milhões, estima a ONU. Cerca de 70% vêm de cinco países: Síria, Venezuela, Afeganistão, Sudão do Sul, Mianymar. A metade mal chegou à adolescência. A maioria dessas crianças não encontra regaços como Nigara encontrou no judô.
Nem as restrições pandêmicas estancam a escalada de refugiados. Cresceu 4% de 2019 para o ano passado. Difícil projetar outro curso diante de ventos como a retomada talibã do país exprimido entre guerras e assaltos às liberdades – sobretudo femininas.
O formigueiro de pernas e mãos dependuradas sobre acessos aos aviões em Cabul se soma às cenas emblemáticas das últimas décadas. Reproduz a busca de salvação comum às passagens mais sombrias da nossa trajetória, sistematicamente retratada na literatura, na pintura, no cinema. Desespero comparável, por exemplo, ao frenético “Invasão Zumbi” (2006), de Sang-Ho Yeon.
Os times olímpico e paralímpico de refugiados expõem o tempo da estupidez. Retiram provisoriamente os deslocamentos forçados do beco do desprezo.
Essas delegações multinacionais reforçam o capital simbólico e sociocultural do esporte, historicamente associado ao processo civilizador, como observam os sociólogos Eric Dunning e Norbert Elias. A equalização de diferenças é uma premissa das competições modernas. Dela se vale o princípio agregador do olimpismo.
Grandes disputas e estrelas esportivas frequentemente exercem papeis políticos, morais, educacionais acima de medalhas, recordes, títulos. De carona nos holofotes, os atletas refugiados clareiam a sangria de vidas impelidas a mendigar paz e dignidade longe dos lares. Curar tamanha ferida são uma urgência e uma responsabilidade globais.
Do esporte extraímos exemplos valiosos ao desafio de, como diz a canção de Walter Franco, manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo. Ao desafio de reconhecer a gravidade e a extensão comunitária da epidemia de refúgios. De transformar diferenças não em isolamento, indiferença, mas numa conjugação de empenhos para repelir toda espécie de fundamentalismo, obscurantismo, discriminação, todo saque ao livre pensar, expressar, amar.
As melhores faces esportivas inspiram esses esforços solidários, das políticas públicas às esquinas do dia a dia. Nelas ecoa o chamado universal, e premente, das filhas de Cabul.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.