Por que a final gourmet da Libertadores não é surpresa
Criticado nas redes sociais, piso de 200 dólares para Flamengo x Palmeiras em Montevidéu reforça elitização global dos estádios iniciada há 30 anos
As redes não deixaram barato. Exclamavam: perderam a noção! Mil e pouco para ver de perto a final da Liberta!?! O olho gordo desencadeou perplexidade unânime. Das esquinas às mesas-redondas.
Flamengo x Palmeiras na capital uruguaia, daqui a um mês, não sai por menos de 200 dólares, o equivalente a um salário-mínimo – mais que o dobro em relação à final da Liga dos Campeões, principal torneio entre clubes do planeta. Somadas passagens aéreas e hospedagem, o programa ultrapassa 10 mil reais.
O bilhete corresponde a 1,4% do PIB per capita nacional, encolhido para algo em torno de 14 mil dólares no ano passado. Já o da Champions representa 0,02% do PIB per capita europeu, perto dos 34,5 mil dólares.
Até os malabaristas do teto governamental encontrariam dificuldade para explicar tal matemática. Não adianta culpar o câmbio malvadão, reflexo da tempestade perfeita semeada há algum tempo.
Mesmo sem a perversidade da inflação recorde dos alimentos, o ingresso salgado exclui e choca. Habita um universo alheio à realidade brasileira, e à nossa ligação visceral com o futebol.
Por outro lado, a jogada dos dirigentes sul-americanos não surpreende. Estádios têm se tornado progressivamente elitistas desde os anos 1990.
Replicamos a cartilha liberal acentuada na ponta de lá do Atlântico, como se partilhássemos as conjunturas econômicas, socioculturais, esportivas. Copiamos a metamorfose da arquibancada em camarote.
A mudança largou faz 30 anos. Manifestou-se no redimensionamento dos estádios. Perderam tamanho, ganharam um feitio menos popular – no acesso, na etiqueta, na configuração física e territorial.
Incrementaram serviços e experiências para extrair mais receita de cada partida. O novo manequim articulou-se a investimentos crescentes nas principais ligas europeias, consolidadas no vértice do entretenimento industrializado.
Para o geógrafo Gilmar Mascarenhas, autor de “Entradas e bandeiras. A conquista do Brasil pelo futebol”, o processo verticaliza dinâmicas de consumo e territorialidades. “Acirra processos de exclusão, tanto de segmentos economicamente desfavorecidos quanto de práticas socioculturais que garantiam nos estádios uma atmosfera de festa e de expressão de anseios coletivos”, observa o pesquisador em artigo publicado há dois anos e meio no Ludopédio.
O modelo naturaliza-se, com o aval da imprensa, sob o rótulo de padrão Fifa. Representa a troca da massa pelo nicho, o fim das multidões acima de 100 mil, 150 mil espectadores.
Impõe-se a prescrição liberal de ganhos maiores com público menores de poder aquisitivo superior. Reproduzida indistintamente nas bandas de cá, a gourmetização dos estádios transfere sua vocação popular ao imaginário, à memória afetiva – o que, de certa forma, também favorece os negócios.
A tática nem sempre vinga. Pode escorregar numa ocupação média e/ou num desembolso per capita abaixo dos esperados. Não raramente resultam do descompasso com as condições socioeconômicas e com o valor percebido do produto.
Calibrar o preço nunca é fácil, em qualquer mercado. Pode-se errar para mais ou para menos nas quantias cobradas por um confronto esportivo. O manual do marketing recomenda diversificá-las, conforme as variações de espaço (setores) e os serviços agregados.
Jogos de forte tônus histórico e simbólico, com procura bem superior à oferta, costumam fugir às recomendações gerais, às equações lógicas, à sensatez. Por exemplo, a entrada mais barata para a decisão da Copa 2014, Alemanha x Argentina, no Maracanã, custava razoáveis R$ 165 (meia), cerca de 75 dólares no câmbio da época. Mas seria revendida, na véspera da partida, por R$ 7 mil, 42 vezes a cifra original.
Crime reconhecido no Estatuto do Torcedor, o cambismo perpetua-se nas decisões mundo afora. Beira o ilusório tentar combatê-lo com um fermento exagerado no preço mínimo de tabela.
O piso de 200 dólares na final da Libertadores, quase o triplo em comparação com a de 2019 (Flamengo 2 x 1 River), talvez pretenda embolsar parte do ágio inevitável em espetáculos exclusivos. Mas contém um efeito colateral emblemático. Alarga a distância ao Brasil brasileiro, castigado pela atrofia de quase 11% na renda média, maior queda desde 2012; pela cesta básica 20% mais cara; pelos 14,5 milhões de desempregados formais.
Quando a venda para a decisão começar, na próxima quarta, os 20 mil bilhetes por ora disponíveis devem se esgotar rapidamente – inclusive os de 650 dólares. O provável sucesso comercial não reduz o fosso para o Brasil afundado na desigualdade, o Brasil dos pés descalços atrás da bola, do carnaval das torcidas.
O país do futebol constitui-se não só do peso da bola na nossa identidade cultural e no nosso cotidiano. Ancora-se não só nos cinco títulos mundiais e na projeção internacional esculpidos por sucessivas safras de talentos.
O epíteto expressa nossa aderência à transversalidade do futebol, capaz de diluir hierarquias e papeis sociais. Uma democratização impulsionada pela prática fácil, poética – quem nunca brincou de chutar chapinha? – e pela mistura sagrada das arquibancadas.
Deixá-las inacessíveis às camadas e expressões populares não é uma decorrência natural do incremento de campeonatos, estádios, experiências, tampouco uma manobra inexorável à legítima expansão de receitas. É o esboço de um apartheid adubado na complacência. Deveria despertar reações menos tópicas do que a chiadeira nas redes sociais e o recado solitário do atacante Dudu: “Muito caro o ingresso, tem que ser mais barato”. Melhor português, impossível.
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Orquestração rubro-negra
O torcedor rubro-negro ganha uma inspiração adicional ao sonho tri na Liberta. Junior conta bastidores dos títulos carioca de 1991 e brasileiro de 1992 no recém-lançado “Maestro” (Approach / Museu da Pelada), escrito com o pesquisador Maurício Neves. Eles vão autografar o livro nesta terça (26), às 18h, na sede do Flamengo (Av. Borges de Medeiros 997, Lagoa).
Com prefácio de Arthur Muhlenberg, as 172 páginas mergulham naquelas campanhas vitoriosas comandadas por Júnior, depois da volta ao Fla, em 1989, aos 35 anos. O craque trocara a lateral para se eternizar como maestro do meio-campo.
Ilustrada por Marcos Vinicius e Rapha Baggas, a publicação traz ainda o posfácio de Marcos Eduardo Neves, autor das biografias sobre Heleno, Renato Gaúcho e Loco Abreu, entre outras. Orquestração à altura do cultuado regente.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.