“Pedaço de mim”: autonomia de filhos portadores de necessidades especiais
Filme é ótima oportunidade de discutir a independência de jovens com algum tipo de transtorno

Acaba de estrear nos cinemas cariocas um filme francês interessantíssimo, para quem tem ou não filhos com algum transtorno mental. “Pedaço de mim” (“Mon inséparable”), conta a história de Mona, que vive em um pequeno apartamento no subúrbio de Paris com seu filho Joel, um rapaz com necessidades especiais e atraso de desenvolvimento. Um dia, o rapaz, por volta de 30 anos, se apaixona por Océane, uma colega de trabalho, também portadora de deficiência. Enquanto os pais lidam com as dificuldades impostas pela condição dos filhos, descobrem que Océane está grávida de Joel. Segundo a diretora Anne-Sophie Bailly, o filme conta a história de “três personagens em busca de liberdade, enquanto tudo os constrange e amarra”.
A história, aparentemente simples, levanta diversos assuntos muito interessantes para quem lida com pacientes de saúde mental. O primeiro deles é o esforço que a maioria dos pais faz para que o filho seja independente. É um movimento altamente louvável. No espectro autismo, por exemplo, os diferentes níveis com que o transtorno se apresenta propicia uma ampla escala de graus de independência. Há autistas que estudam, chegam à universidade e até trabalham. Os pais de Mona e Joel são assim.
Outro ponto muito rico abordado no filme é o quanto esses pais acabam exercendo uma superproteção com os filhos. É uma postura bastante compreensível, tendo em vista o nível de demanda – e dificuldades – que eles podem apresentar. Não é raro se desenhar uma intricada relação de co-dependência afetiva mais simbiótica do que já acontece naturalmente com os pais em relação a seus filhos. No entanto, depois de uma certa idade, é preciso deixá-los seguir o próprio caminho. E verdade seja dita: a dificuldade com a liberdade dos filhos não é uma exclusividade de pais com filhos com necessidades especiais.
Essa visão de “meu eterno bebê” que alguns pais podem ter embaça a compreensão de que esses filhos possam ter amoroso e despertar o interesse amoroso de alguém. A ideia de uma vida sexual ativa, então, fica ainda mais complicada. Acontece que isso é absolutamente normal. Ela não deve ser forçada pelos pais, mas se parte de um desejo natural e genuíno do jovem, por que não?
Outra provocação muito interessante é que o casal Joel e Océane, apesar de portadores de transtornos, são diferentes entre si. É uma abordagem muito esperta e acertada, porque provoca o senso comum de que “quem difere do normal é tudo igual”, o que é uma falácia. Todas as pessoas são diferentes entre si.
Quem somos nós para julgar sua capacidade de cuidar de outra pessoa? Que direitos – e deveres – temos um sobre as vidas e os corpos dos outros? De forma doce e generosa, “Pedaço de mim” convida o espectador a rever os seus conceitos e descobrir onde pode morar os seus preconceitos.
Fabio Barbirato é psiquiatra pela ABP/CFM e responsável pelo Setor de Psiquiatria Infantil do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa do Rio. Como professor, dá aulas na pós-graduação em Medicina e Psicologia da PUC-Rio. É autor dos livros “A mente do seu filho” e “O menino que nunca sorriu & outras histórias”. Foi um dos apresentadores do quadro “Eu amo quem sou”, sobre bullying, no “Fantástico” (TV Globo).