Saúde mental, jovens e crimes virtuais: entenda a relação
Reiteradas ocorrências servem de alerta aos pais sobre a vida online dos filhos
A juíza Vanessa Cavalieri concedeu entrevista recente à repórter Constança Tatsch, do jornal O Globo que considero de serviço público. Já tive o prazer de dividir mesas de debates e palestras com a juíza e seu conhecimento é sempre de grande valia por ser muito esclarecedor. Responsável pela Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, ela explicou na matéria, de forma bastante elucidativa, como ocorrem os crimes na internet contra crianças e jovens e o que os pais devem fazer para evitar que os filhos se tornem vítimas de golpes. A juiz definiu a atual situação como “uma guerra”. Curiosamente, muitas das questões que Cavalieri levantou também passam pelos nossos consultórios.
A primeira delas é quanto a privacidade dos filhos. Há pais que consideram uma certa invasão de privacidade ter acesso ao conteúdo do que os filhos consomem na internet e nas redes sociais. O que sempre digo aos pais é que, quantos aos de menor idade, este é um ponto inegociável: eles devem conferir o que está sendo acessado. Quantos aos mais velhos, acredito que deve se construir uma relação de confiança. Quanto mais o jovem se mostra maduro e responsável, mais ele pode ir ganhando privacidade. É uma conquista, não é um direito.
Outro ponto relevante da entrevista da juíza é o que explicita o ambiente virtual como perigoso para crianças e adolescentes, tendo em vista o aumento de casos de suicídios, automutilação e prejuízos à saúde mental, todos com origem no uso de internet, como grupos surgidos no Discord que fazem desafios e impõem automutilação a jovens, especialmente meninas.
A juíza Cavalieri explicou como são escolhidas essas meninas. Segundo elas, as principais vítimas são as que se mostram mais vulneráveis, as que afirmam já sofrer de algum tipo de transtorno, como os alimentares (bulimia ou anorexia), ou são vítimas de bullying. A fragilidade emocional das vítimas é mapeada a partir do que elas postam em redes sociais, como o TikTok (daí os pais ficarem atentos não apenas ao que os filhos consomem, mas também ao que postam). Com a vítima identificada, o algoz começa a dar atenção a ela, pede nudes e a vítima manda. Pronto. O cerco para as chantagens está armado. Sob a ameaça de vazarem as fotos, os bandidos fazem um verdadeiro abuso psicológico da jovem.
Sob o ponto de vista investigativo, a juíza conseguiu fazer um verdadeiro mapeamento de quem são os criminosos: meninos ainda jovens, por volta de 13 ou 14 anos. Segundo ela, muitos são aliciados durante partidas de jogos populares, como League of Legends.
Sempre digo aos pais: a internet é uma praça pública, com todo o tipo de gente e de interesse. Você largaria seu filho sozinho em uma praça pública? Com certeza não. Então porque não orientá-lo também no uso de internet. Há pouco tempo, o excelente programa de Caco Barcelos na TV Globo mostrou uma imagem impressionante: uma menina que era chantageada por um grupo de rapazes online. A mãe dela entra no quarto, a menina vira o celular para a mão não ver, a mãe julga que está tudo certo com a filha no quarto e sai. Assim que ela vira as costas, a menina se corta. A sequência de imagens foi emblemática para nos lembrar que o perigo aos filhos não está mais só lá fora, está dentro de casa também. E é atenção a ele que a juíza Cavalieri, eu e todos os demais profissionais de saúde mental e direitos da criança e adolescência pedem a atenção dos pais enquanto é tempo.
Fabio Barbirato é psiquiatra pela ABP/CFM e responsável pelo Setor de Psiquiatria Infantil do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa do Rio. Como professor, dá aulas na pós-graduação em Medicina e Psicologia da PUC-Rio. É autor dos livros “A mente do seu filho” e “O menino que nunca sorriu & outras histórias”. Foi um dos apresentadores do quadro “Eu amo quem sou”, sobre bullying, no “Fantástico” (TV Globo).