Entre likes e legislação: o futuro do consumo audiovisual brasileiro
Apesar do aumento recente na bilheteria das salas de cinema, o setor ainda opera em patamares abaixo de 2019

Muito se fala atualmente sobre crise de ansiedade, esgotamento digital e seus impactos na vida contemporânea. Se, por um lado, médicos suíços já prescrevem atividades culturais como antídoto para esses sintomas, por outro, os mesmos sintomas transformam o modo como o brasileiro consome cultura.
A digitalização facilitou a comunicação e o acesso a informações, tornando a vida mais conveniente. Mas, ao mesmo tempo, nos acostumou a consumir na lógica do algoritmo: conteúdos cada vez mais curtos, moldados sob medida para nossas preferências. Nesse contexto, como ficam, então, o consumo de cultura e audiovisual, tradicionalmente marcados por experiências mais longas e reflexivas?
Desde a pandemia, os brasileiros vêm reinserindo atividades culturais presenciais — shows, cinema, teatro — em seu dia a dia, com crescimentos significativos a cada ano, como mostra o estudo da Firjan O Futuro da Cultura e da Indústria Audiovisual na Era Digital. No entanto, para a maior parte dessas atividades, a retomada ainda não foi suficiente para recuperar a frequência anterior à pandemia. Já o consumo online de música, filmes, séries e podcasts, consolidado durante o isolamento social, permanece em alta.
No audiovisual, especificamente, as transformações no consumo são ainda mais evidentes. O setor, um dos grandes motores da indústria criativa do Rio de Janeiro, viu o streaming se consolidar como principal canal de acesso a filmes e séries e, ainda, as próprias redes sociais se estabelecerem como plataformas de consumo de vídeos – sobretudo para as gerações mais jovens. Apesar do aumento recente na bilheteria das salas de cinema, o setor ainda opera em patamares abaixo de 2019. E esse não é um fenômeno exclusivamente brasileiro: o estudo da Firjan mostra que pelo menos outros 19 países, como Coreia do Sul e Estados Unidos, enfrentam realidade semelhante, sugerindo um impacto duradouro da digitalização nos hábitos culturais globais.
Chama atenção, ainda, a queda do market share dos filmes brasileiros nas salas de cinema nos últimos anos: de 13,5% em 2019 para apenas 3,3% em 2023. A produção nacional perdeu espaço para títulos estrangeiros, tornando ainda mais urgente o debate sobre políticas para o desenvolvimento e preservação do setor.
A cidade do Rio de Janeiro se destaca positivamente nesse contexto: segundo a RioFilme, 80% do público que consumiu filmes brasileiros no cinema este ano estava lá para assistir às produções cinematográfica cariocas. Isso reflete a importância da indústria audiovisual da cidade do Rio de Janeiro no contexto nacional e, consequentemente, sua força ao redor do mundo. A primeira estatueta brasileira na história do Oscar foi trazida por uma produção carioca.
Esse paradoxo se intensifica justamente diante do recente prestígio internacional. O sucesso brasileiro em Cannes e no Oscar, com premiações inéditas para obras e talentos nacionais, demonstra o potencial criativo do país e sua capacidade de dialogar com o mundo. Mais do que troféus, esses reconhecimentos simbolizam a descentralização do Soft Power global: a cultura brasileira, diversa e inovadora, conquista espaço e influência em um cenário dominado por poucos polos tradicionais.
O destaque internacional e a qualidade da produção carioca, aliados à retomada de investimentos e à renovação da política de cota de telas nos cinemas, trazem expectativas otimistas para a indústria cinematográfica nacional e da cidade. Mas o brilho das premiações levanta uma questão fundamental: como transformar prestígio em sustentabilidade econômica?
O debate ganhou uma nova camada com o recente “tarifaço” anunciado pelo governo Trump sobre produtos estrangeiros, incluindo filmes produzidos fora dos Estados Unidos. A medida reacendeu discussões globais e brasileiras sobre protecionismo, soberania cultural e necessidade de políticas nacionais para fortalecer a produção local. Em um mundo onde as barreiras digitais são cada vez mais tênues, é fundamental garantir condições justas de competição e diversidade de vozes: novos contextos sociais e tecnológicos exigem novas abordagens regulatórias.
É diante dessa conjuntura que se discute a urgência da regulamentação dos streamings, que atualmente competem com outros segmentos audiovisuais, como cinemas e TV, sem ter obrigações equiparáveis. O objetivo é que a nova lei, já em discussão no congresso, preveja uma cota obrigatória de conteúdo brasileiro nas plataformas, garanta a rotatividade e visibilidade desses conteúdos e contribua com tributos que retornem para a própria cadeia produtiva – assim como já ocorre em canais da TV fechada e no cinema. Essa ação não apenas oferece condições justas à indústria audiovisual brasileira, como também promove a diversidade cultural, preserva as nossas narrativas e fomenta a geração de emprego e renda no Brasil.
O futuro do consumo cultural brasileiro será, cada vez mais, decidido entre likes e legislação. O desafio está em equilibrar a liberdade criativa e a dinâmica de inovação, que marcam a era digital, com políticas públicas, que valorizem a produção nacional e ampliem as oportunidades para quem faz arte e gera renda no Brasil. Para transformar reconhecimento internacional em desenvolvimento sustentável e de longo prazo, é preciso investir em estratégias de Soft Power, fomentar a produção local e garantir que cada visualização, cada prêmio e cada nova tendência global também sejam oportunidades para contar — e reinventar — nossas próprias histórias.
Joana Siqueira, consultora de estudos e pesquisas da Firjan e assessora do Conselho Empresarial Firjan da Indústria Criativa, e Tatiana Sanchez, gerente de Estudos e Pesquisas da Firjan, são coautoras dessa coluna.