Crônica, por Eduardo Affonso: Minhoca
"Não creio em reencarnação. O que é uma pena, porque seria ótimo retornar com um 'apigreide'"

Não creio em reencarnação. O que é uma pena, porque seria ótimo retornar com um apigreide, tendo a chance de viver de novo como um ser mais completo, mais sábio, mais evoluído. Minhoca, por exemplo.
Minhoca mora na própria comida. Deu fome, não precisa descongelar lasanha no micro-ondas, entrar em fila de restaurante a quilo, contar calorias, verificar se contém glúten: é só abocanhar o que estiver mais perto – a parede, o teto ou o piso (o gosto, como no caso do hambúrguer e sua embalagem – costuma ser o mesmo).
Sendo hermafrodita, o risco de uma minhoca ficar chupando dedo num sábado à noite é praticamente nulo. E não só porque ela não tenha dedo: se não aparecer ninguém mais interessante, ela se vira consigo mesma.
Claro que sempre há a possibilidade de se nascer uma minhoca trans ou gay – e aí temos de convir que os embalos de sábado à noite teriam um complicador e tanto.
A probabilidade estatística de uma minhoca de orientação sexual alternativa encontrar, sem Tinder, Happn ou Bate-papo do UOL, outro anelídeo compatível é quase a mesma de haver vida inteligente em certos partidos. Isso sem contar que “minhoca gay” é um cacófato e tanto.
Mas suponhamos que, na ficha de reencarnação, eu possa escolher não só a espécie (“minhoca”) como também a orientação sexual (“hermafrodita cis heteronormativa opressora”). Os benefícios serão infinitos.
Primeiro, minha parte feminina não vai precisar fingir orgasmo: a parte masculina terá plena consciência de tudo, e não se deixará enganar com um mero revirar de olhinhos, pés contorcidos e unhas cravando no travesseiro – até porque não haverá pés nem unhas nem travesseiro.
Por outro lado, qualquer falha do meu lado masculino ficará em completo sigilo – só eu mesmo ficarei sabendo. E nem precisarei tentar me iludir dizendo que isso nunca me aconteceu antes, careca que estarei de saber do meu histórico de micos.
Não precisarei inventar uma enxaqueca para não transar nem terei de mentir, cinco segundos depois de acender o cigarro, ao perguntar a mim mesmo se foi bom pra mim.
Se alguém ocupar mais da metade da cama, serei sempre eu – e dormirei de conchinha comigo mesmo, antes que eu comece a roncar.
Minha sogra vai gostar de mim – afinal, ela é minha mãe. E não será doida de não me aceitar como genro. Ou nora.
Não poderei nunca pular a cerca sem ser descoberto por mim mesmo (nada é perfeito), mas o melhor de tudo é que jamais levarei um pé na bunda. Não só por não ter pé, mas, principalmente, por não ter bunda.
