Opinião, por Luiz Piauhylino: advogado de brasileiros em Portugal
"Por trás dessas questões jurídicas, há rostos, há famílias, há histórias"

Sou advogado luso-brasileiro. Nasci no Recife, fui criado em Brasília e vivo em Portugal há anos. Aqui, trabalho com o que me move: ajudar pessoas a reconstruir suas vidas. Faço isso orientando famílias, empresários, aposentados — brasileiros e de tantas outras nacionalidades — a legalizarem sua situação em Portugal, a obterem o seu direito de residir, trabalhar, viver. Como um dia fez meu bisavô Serafim Teixeira, natural de Gondomar, que atravessou o Atlântico em busca de novos horizontes no Brasil, também vejo, todos os dias, milhares de pessoas cruzarem o caminho inverso com o mesmo sonho.
Portugal tem, naturalmente, todo o direito — e o dever — de legislar segundo a vontade soberana do seu povo. O Parlamento, eleito democraticamente, é o espaço legítimo para definir os caminhos da política migratória. Mas é precisamente por isso — por representar a vontade do povo — que se espera, desse mesmo Parlamento, ponderação e respeito à confiança pública.
Mudar a lei pode ser legítimo. Retirar direitos adquiridos, ou alterar regras no meio do jogo, já não é.
Nas últimas semanas, assistimos a uma sucessão de anúncios e alterações que deixaram um sentimento inquietante no ar. Famílias que estão em Portugal há mais de um ano, que investiram suas economias, que deixaram casas, escolas, empregos, ainda hoje não conseguiram sequer uma simples marcação com a AIMA – Agência para a Integração Migrações e Asilo. Estão no limbo. Vêm agora novas leis que ameaçam expulsar ou separar quem já está aqui e que apenas aguarda que o Estado funcione. Não me parece justo. Não me parece digno.
A gravidade da situação é confirmada por dados recentes: em junho, o Tribunal Administrativo recebeu mais de 30.000 (trinta mil) novos processos contra a AIMA — uma avalanche de contestações por falta de respostas administrativas, acompanhada de um fluxo diário de 800 a 900 novos casos. É o reflexo de um sistema sobrecarregado, sem capacidade para cumprir prazos, sem condições para honrar a promessa do Estado de Direito.
Há ainda outro ponto, mais técnico, porém não menos grave: o da nacionalidade. Pela proposta atual, o prazo de residência necessário para pedir nacionalidade portuguesa, hoje contado desde a data do pedido de residência, passaria a contar apenas a partir da emissão do título de residência. Ora, é notório que, nos últimos anos, os processos se arrastam por meses — às vezes, por mais de um ano. Se aprovada tal mudança com efeitos retroativos, uma pessoa que completaria cinco anos de residência em julho de 2025 poderá ver-se privada de um direito que já se antevia, apenas porque o Estado demorou a processar o seu pedido. Isso porque há quem defenda que a mudança passou a valer desde a data de apresentação do programa do Governo, em junho de 2025 — antes mesmo de qualquer lei ter sido aprovada. Com todo o respeito: não é assim que funciona o Estado de Direito.
Por trás dessas questões jurídicas, há rostos, há famílias, há histórias. E há a imagem positiva de Portugal — reconquistada com esforço, ao longo dos últimos anos, como país seguro, estável, acolhedor e, por que não, “atraente”. Um lugar onde a palavra do Estado ainda vale algo. Um país onde as leis valem quando são publicadas e onde quem cumpre as regras não é penalizado.
Portugal precisa de imigrantes. Isso não é uma opinião — é um fato. Na semana passada, um hotel tradicional no Alentejo anunciou o encerramento das atividades por falta de mão de obra. E quantas empresas mais se verão nessa posição, se não houver uma política migratória séria, coerente e funcional? O envelhecimento da população é um desafio real. Os imigrantes — qualificados ou não — podem e devem ser parte da solução. Ajudam a financiar a Segurança Social, a ocupar postos de trabalho desertos e, tantas vezes, a gerar riqueza.
Sim, há problemas. O custo de vida aumentou, a habitação escasseia, e é compreensível que os portugueses sintam desconforto. Mas o inimigo não é o imigrante. O inimigo é a inércia do Estado. É a falta de investimento público em habitação, em serviços, em estrutura. Investir em integração, em processamento eficiente — sob o ponto de vista econômico e temporal, por meio da inteligência artificial — e em políticas habitacionais, isso, sim, cria espaço para todos.
A ausência de investimento em direitos básicos e no funcionamento regular da máquina pública traduz-se em problemas reais — que geram fricção entre os diversos agentes do Estado e a sociedade em geral. E quando o Estado falha, o ressentimento procura culpados. A linguagem hostil já se fez ouvir, inclusive, dentro do Parlamento. Recentemente, o líder do partido Chega divulgou na Assembleia da República os nomes de crianças estrangeiras matriculadas em escolas portuguesas, com o intuito claro de sustentar que Portugal tem, hoje, imigrantes demais.
Mas… E se a situação fosse invertida?
Já estive em Zermatt, uma vila alpina na Suíça, onde metade da população é portuguesa. O que pensaram os suíços quando de repente viram as escolas locais repletas de pequenos Joões, Pedros, Adelinos, Fátimas, Ritas e Mafaldas? Ficaram incomodados? Sentiram-se ameaçados? Ou reconheceram, ali, filhos de gente trabalhadora que ajuda a construir o que há de melhor no país?
E em Luxemburgo? E em França? Em Inglaterra, nos Estados Unidos, no Brasil, na Venezuela? Quantos milhões de portugueses emigraram e foram acolhidos com dignidade em outras terras?
Não seria desonroso, até com a própria história de Portugal, tratar hoje com desconfiança e frieza aqueles que aqui chegam com os mesmos sonhos que tantos portugueses um dia levaram e concretizaram além-mar, tal e qual o meu bisavô Serafim?
Ainda há tempo. O Parlamento instalou uma comissão de acompanhamento e discussão para alterar a Lei da Nacionalidade. Que ela escute. Que ela considere. Que ela atue. Quanto à alteração da Lei dos Estrangeiros, foi ontem aprovada pelo Parlamento, seguindo agora para apreciação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Igualmente, espero — como tantos outros — que ele pondere. Que ele atue. Se preciso for, que remeta tais alterações para análise do Tribunal Constitucional.
A história não julga apenas as decisões tomadas — mas também a forma como foram tomadas e a quem se escolheu virar as costas.
Portugal não será menos português por ser mais justo com quem o escolheu.
Luiz Piauhylino Neto é advogado, brasileiro, dedicado principalmente a legalizar imigrantes em Portugal, onde vive há anos. Uma das frases que mais usa é: “Portugal, entre o Direito e a Esperança.”