Rodney de Oxóssi, no Dia de Iemanjá: “Era pra ser uma linda história…”
"A celebração à Rainha do Mar parece ganhar força, mas enfrenta uma série de reações com efeitos perigosos e lamentáveis"

Senhora de todas as águas, Iemanjá é fonte de vida no modo africano de conceber o sagrado. Nascida de um rio, tomou corpo e ganhou a dimensão do mar, fazendo do oceano um elo para conectar seus filhos mundo afora e seios suficientemente fartos para sustentar tantas formas de ver e crer e para abrigar cada ser que precisasse de uma mãe, de um colo. Era pra ser uma linda história, mas a humanidade quis sobrepor suas diferenças e suplantou a diversidade ao inventar “o outro”. A espada do colonizador rasgou o ventre de tantas civilizações e, ao dividir um continente, dispersou um povo e, ao mesmo tempo, propagou sua cultura. Era pra ser um flagelo, mas foi só o começo de uma epopeia.
Toda história heroica exalta dores e conquistas, contudo, a escravização do povo negro é uma atrocidade que não merece nenhum tipo de romantização. Nem mesmo a saga dos orixás e a importância do candomblé e outros territórios de resistência para a manutenção de vidas e memórias negras podem ser consideradas sem dimensionar os sentimentos e sequelas que carregam, fazendo lembrar o quanto de luta empreenderam para simplesmente continuar a existir. Mas ver que um país não seria capaz de se definir como nação sem mencionar e exaltar as contribuições dessa gente já representa, por si só, uma grande vitória.
Segue a luta do povo negro contra o racismo e seus infinitos desdobramentos. A intolerância religiosa é, certamente, uma das formas mais hediondas de opressão, e no Brasil, recai com violência e aspectos de terrorismo sobre as tradições de matriz africana. Criminalizar, perseguir, vilipendiar e combater os rituais do candomblé e da umbanda têm sido uma constante ao longo da história. Mudam cenários e personagens, mas as ameaças seguem exatamente iguais. Atualmente, a junção do crime organizado e milícias a alguns movimentos neopentecostais vêm destruindo terreiros, impedindo cultos e constrangendo adeptos. As denúncias crescem assustadoramente e embasam a noção de racismo religioso, comprovando que as tentativas de apagamento do povo negro passam pela destruição de sua cultura e tradições.
A cada réveillon em Copacabana, a cada 2 de fevereiro no rio Vermelho, em Salvador, ou nas águas do Guaíba, em Porto Alegre, a celebração à Rainha do Mar parece ganhar força, mas, na verdade, enfrenta uma série de reações com efeitos perigosos e lamentáveis. A presença de terreiros na orla de Copacabana, por exemplo, foi rechaçada e, no último 31 de dezembro, um palco gospel foi uma das atrações da festa. Parece inofensiva e inocente a substituição do nome de Iemanjá numa música de carnaval, mas é uma violência simbólica que inevitavelmente desemboca em ataques reais.
Iemanjá segue rainha e soberana nas águas do rio Vermelho e do Rio de Janeiro. Mais um 2 de fevereiro chegou, e o mar se enfeita de rosas, se perfuma de alfazema e recebe toda sorte de presentes e pedidos, seja de quem for. Iemanjá continua abraçando a todos e demonstrando que a diversidade é nossa maior riqueza. Com a grandeza de uma mãe compreensiva e acolhedora, abraça o povo brasileiro sem discriminação nem ressentimentos e une seus filhos na efervescência de um pré-carnaval, pulando sete ondas e acreditando, por um instante, na força da humanidade.
Rodney William Eugênio, ou Pai Rodney de Oxóssi, é babalorixá e antropólogo. Formado em Ciências Sociais, mestre em Gerontologia e doutor em Ciências Sociais pela PUC-SP, participa, na terça e quarta (04 e 05/02), do “1º Seminário LGBT+ de Fé”, na Biblioteca Parque Estadual, no Centro. É colunista da “Carta Capital” e autor dos livros “A Bênção aos Mais Velhos: Poder e Senioridade nos Terreiros de Candomblé”, “Apropriação Cultural e Axé: O Poder de Realizar – Mensagens para Mudar seu Dia”. Em 2019, foi escolhido pelo MIPAD/ONU como uma das pessoas negras mais influentes do mundo.