Estávamos no Severino. Como um bando de velhos moleques, jogávamos conversa fora.
— Todo mundo sabe que a nossa memória musical está ligada a lembranças que ficaram para sempre.
— Por experiência, posso garantir: a razão é sempre uma mulher que perdemos! Para o bem ou para o mal!
— Ou que ganhamos — bradou o Oscar, um novo companheiro do Severino. — Conheci a Elvira num Carnaval e estamos casados até hoje.
— É sempre saudade que sentimos de nós mesmos. De quando éramos mais felizes!
— Achamos que o que passou era melhor!
— Melhor era a juventude! O vigor, a disposição para a vida! A disposição para o Carnaval.
— Falam que o Natal é triste. Triste é o Carnaval, com suas marchinhas que só fazem lembrar.
— Vamos testar a memória. Que marchinha marcou a sua vida de alguma maneira?
E o Antonio, beirando os 80, agora assíduo nas nossas reuniões, cantarolou o primeiro verso:
“Daqui não saio, daqui
ninguém me tira.”
— Ah, dessa quem é que não lembra?
— Até quem não era nascido!
E todos nós, sem exceção:
“Daqui não saio, daqui ninguém me tira.
Onde é que eu vou morar?
O senhor tenha paciência de esperar!
Inda mais com quatro filhos
Onde é que vou parar?”
— Em que ano foi?
— Ah, não, nada de datas e idades. Que aí a saudade aumenta e começamos a chorar.
— Diga o século então! — provocou Gabriel, o mais novo do grupo.
— Engraçadinho! Século XX!
E aí rimos muito. Como era de esperar, houve um brusco e emocionado silêncio. Na hora me veio à cabeça um verso de Fernando Pessoa: “E ri como quem tem chorado muito”. Já notaram essa transformação? Quando rimos muito, acabamos sempre com lágrimas nos olhos.
Aproveitamos o momento para pedir a garrafa de vinho e as costumeiras lascas de grana padano.
— Só uma garrafa não vai dar — palpitou alguém.
— Pedimos outra depois.
E mais outra e mais outra…
— Ei — interrompi eu. —
Viemos conversar ou beber?
— As duas coisas.
— Esse negócio de marchinhas de Carnaval, essas lembranças de velhos Carnavais, tudo isso são provocações pra judiar da gente!
Só aí demos conta da presença do nosso querido amigo Raul, mergulhado no silêncio de quem pensa… e, mais do que isso, de quem sofre com o que lembra.
— E aí, Raul — aticei eu —, lembrando com saudade de algum Carnaval especial?
— Estava pensando se ela também, como eu, sofre quando escuta Dama das Camélias.
— Ela quem?
— O nome não interessa. Ela. — E cantarolou baixinho, mas para todos ouvirem, os belíssimos versos, melancólicos como o próprio Carnaval:
“A sorrir você me apareceu
E as flores que você me deu
Guardei no cofre da recordação.
Porém depois você partiu
Pra muito longe e não voltou
E a saudade que ficou
Não quis abandonar meu coração.
A minha vida se resume,
Ó Dama das Camélias,
Em duas flores sem perfume,
Ó Dama das Camélias!”
Percebemos então, em meio ao silêncio que se formou, que não era só ele que tinha duas lágrimas nos olhos, ensaiando rolar pelo rosto. Não, não era só ele.
***
O espaço é curto para tantas lembranças. Que elas venham, mesmo as melancólicas. E bom Carnaval para todos.