Presença do outono
Foi no último dia 20 de março, pouco antes das 2 e meia da tarde. Eu estava em casa, me arrumando para sair em direção à Livraria Argumento, onde amigos me esperavam, quando percebi, ou melhor, quando senti que o outono havia chegado. Exatamente naquele momento. Posso garantir que não estava informado da mudança da […]
Foi no último dia 20 de março, pouco antes das 2 e meia da tarde. Eu estava em casa, me arrumando para sair em direção à Livraria Argumento, onde amigos me esperavam, quando percebi, ou melhor, quando senti que o outono havia chegado. Exatamente naquele momento. Posso garantir que não estava informado da mudança da estação para aquele dia e aquela hora. Sabia, claro, que o verão estava por acabar e que, depois dele, como sempre, chegaria o outono.
— Será que alguém sentiu isso alguma vez? A presença física de uma estação?
— Você está supondo que alguma manifestação sobrenatural possa ter ocorrido? — perguntou o Raul, no Café Severino, quando eu contei o que havia sentido.
— Não estou supondo nada. Estou apenas contando o que senti.
— Conta como é que foi isso — pediu a Carla, ansiosa, olhos brilhantes, ajeitando-se na cadeira.
E eu continuei, agora diretamente para ela, sem me preocupar com a descrença dos demais:
— Eu estava abotoando a camisa, de costas para a porta da cobertura, quando parei o movimento e me virei subitamente para o terraço. E senti, posso mesmo dizer que vi, o outono chegando e entrando na sala, como se fosse uma pessoa.
— Ah, não gosto desse tipo de assunto — interrompeu a Glorinha. — Me dá medo.
— Eu adoro tudo o que é mistério, que não tem explicação — cortou a Carla.
E eu completei:
— …como uma pessoa chegando à sala e parando diante de mim.
— Se era o outono, deveria ter a aparência de uma pessoa da terceira idade!
Não me aborreci com a piada. Sabia de antemão que ninguém ia acreditar quando eu contasse. Que diriam que era coisa de novelista de televisão, ficção delirante que não podia ser levada a sério.
— Quando você começou a contar essa história, pensei que outono fosse o nome de algum amigo novo que havia entrado no seu apartamento pelo terraço!
Agora era o Gabriel, engenheiro, marido da Carla, que se fazia de engraçado. E, mais uma vez, todos riram. Menos a Carla, que olhou feio para o marido, lascando uma direta:
— Você só acredita em números!
— Ah, deixa de ser boba. Não vê que isso é pura imaginação!
— E daí, se for? Sabe o que Einstein dizia? Que a imaginação é mais importante que o conhecimento!
— Ah, Einstein também só acreditava em números! Deve ter falado isso de gozação!
Carla não contra-atacou. E fez-se um súbito silêncio no Café Severino. O que eu percebi, então, era que todos estavam mexidos com o que eu acabara de contar e procuravam disfarçar o incômodo. Percebiam que eu falava sério. Após um tempo em que renovamos os pedidos de mais uma porção de queijo e mais uma garrafa de vinho, Raul voltou a brincar, levantando a taça:
— Um brinde ao outono, que está presente e quer sentar-se entre nós. Uma cadeira, por favor.
E todos riram. Menos Carla, a única pessoa ali que acreditava na minha história. Provavelmente porque está começando a escrever pequenos episódios que coleciona no seu consultório de médica e tenha agido com a solidariedade de uma futura colega de ofício.
No fim da tarde, já se avizinhando a hora do crepúsculo, cada um foi para a sua casa, levando na cabeça e no coração certezas e incertezas, pitadas de realidade e de imaginação. Coisas do outono, para mim a mais bela estação do ano, pela afinidade que tem com a vida humana, sendo, ao mesmo tempo, declínio e colheita. Perda e proveito.
Foi Drummond que escreveu: “Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza”.
O que posso dizer é que pretendo deixar aberta a porta do terraço, para que o inverno entre, sem pedir licença, no próximo dia 20 de junho, precisamente às 20 horas, 8 minutos e 48 segundos. Será bem-vindo.