Na manhã desta quinta-feira, 27 de maio, a aurora celestial convocou para eternidade, junto onde vivem imponentes os deuses da música, um “suntuoso personagem de rudimentar beleza.” Certamente o sol e o som lhe guiaram até sua cadeira no paraíso e nesse lugar privilegiado, Nelson Sargento se sentou ao lado de Cartola, Carlos Cachaça, Nelson Cavaquinho, Élton Medeiros, Beth Carvalho e muitos outros bambas.
Nelson Mattos foi um baluarte, griot e mestre imortal da nossa cultura. É difícil não lembrar que no último desfile de carnaval antes da pandemia, ele foi destaque interpretando logo José, pai de Jesus, abençoando a avenida e defendendo as cores da Mangueira.
Nelson Sargento nasceu no dia 25 de julho de 1924, tendo chegado ao mundo em pleno contexto de efervescência cultural e política produzido pela vanguarda do movimento modernista. Mesmo assim, infelizmente, ainda viveu na pele a dura realidade de repressão ao samba. Contudo, não se furtou em usar sua voz como forma de resistência e bradou: “Samba, negro, forte, destemido, foi duramente perseguido, na esquina, no botequim, no terreiro”.
Teve uma infância humilde, cresceu no Salgueiro, onde aos nove anos aprendeu a tocar tamborim. Na adolescência se mudou com a família para o morro da Mangueira e lá, por influência de nomes como Cartola e Nelson Cavaquinho, aprendeu a tocar o violão e a compor. Surge então uma relação de intensa paixão pela Verde e Rosa que lhe acompanharia por toda vida.
É curioso constatar que Nelson Sargento partiu desde plano poucas horas após comemorarmos o Dia Mundial da África, no mesmo mês em que sua grande amiga, Tia Maria do Jongo, também seguiu para o orum, em 2019. Justamente em maio, quando também se comemoram os aniversários de Jamelão e Beth Carvalho, amigos que de braços abertos certamente saúdam agora a chegada do poeta na eternidade.
Nelson partiu no outono, estação que cantou em um samba memorável como: “Estação singela e pura, é a pujança da natura dando frutos em profusão”. Faltavam apenas cerca de dois meses para completar seus 97 anos. Tenho certeza que logo que a dureza da vida permitir faremos um gurufim digno de sua grandeza.
Nesse momento é inevitável não recorrer à poesia musical que fez tanto sentido na vida do mestre. Assim que soube da triste notícia do falecimento fui tomado por uma serie de emoções musicais em forma de canções. Primeiro lembrei que o “Samba agoniza mas não morre…”. Em seguida a querida Regina Zappa lembrou que “Em Mangueira, quando morre um poeta todos choram, vivo tranquilo em Mangueira porque sei que alguém há de chorar quando eu morrer…”. E exatamente agora, enquanto escrevo este texto, me veio à cabeça: “Quando eu piso em folhas secas, caídas de uma mangueira, penso na minha escola e nos poetas da minha estação primeira…”.
Nelson Sargento merece as mais belas lembranças e todas as homenagens possíveis. Não tenho dúvidas que seu nome e obras ficaram guardados num relicário em nossos corações. Muito antes de sua morte, Moacyr Luz e o saudoso Aldir Blanc, que nos deixou há uma ano, também em pleno mês de maio, fizeram uma música maravilhosa para presenteá-lo, chamada “Flores em Vida”. Uma parte da letra que destaco afirma: “Como dizia outro Nelson, despedida não dá nenhum prazer. Pra parar com essa mania de sofrer, trouxe aqui flores em vida pra você.” Por fim, termina dizendo “Nelson é o mestre sala dos mares singrando as águas da Baía”.
Paulão Sete Cordas reconhece que o amigo foi um artista que sempre cantou, pintou e escreveu sobre a realidade, dureza e beleza de seu povo. Paulão nos disse que “Nelson é um dos grandes artistas do nosso país. Artista genuinamente popular, nos deixa uma obra rica e extensa, seu repertório será incorporado ao que existe de melhor no mundo do samba.”
Outra bela homenagem foi o texto escrito por Didu Noigueira, que de forma emocionante nos relata ter tido o prazer de conviver com Nelson. Didu chamou minha atenção para a grande memória e vivência artística de seu ídolo e amigo, chamado carinhosamente de “Mais Velho”. Contou que “Nelson era um dos poucos que vivenciaram a ambiência originária do samba, ele trazia consigo o som dos tambores africanos no seus ouvidos e melodias”.
Com a devida autorização reproduzimos abaixo um trecho da carta escrita por Didu Nogueira.
“Tive o prazer de fazer vários shows, e ter inúmeras conversas com Nelson, ele sempre estava presente nos meus aniversários, participou de vários sambas do Bloco do Clube do Samba e no seu último aniversário, resolvi invadir sua casa. Fui juntamente com meu amor Maria Dias e meu irmão Germano Fehr, que relutaram em subir. Mas mesmo assim, munido de um saco de lixo cheio de cerveja e com outras tantas na cabeça, eu levei todos para reverenciá-lo.
Nelson Sargento, juntamente com meu querido amigo Agenor de Oliveira, seriam os convidados da live do nosso programa Sambando pelo Brasil, na semana passada, porém em função do Mais Velho não estar bem, cancelamos.
Minha comadre/irmã Zilmar Borges Basilio tinha me ligado muitos dias atrás pra que eu fosse visitá-lo e batessemos um papo e tal. E assim foi feito, tive lá na quarta-feira passada e o Mais Velho já estava bastante debilitado, mesmo assim insistia em fazer a live do dia seguinte.
_ Não inventa Nelson, você precisa se cuidar.
E ele agoniado com aquele momento que estava vivendo sem produzir me disse Sargenteanamente.
_ Pô, parece que jogaram um pó em mim!
Se jogaram Mais Velho, não sei. Mas que você derramou em todos nós a beleza de suas artes, não tenho a menor dúvida.
Obrigado por absolutamente todos os momentos!”.
O grande Paulo César Feital também fez questão de se pronunciar de forma emocionada. Feital havia gravado um lindo vídeo de apoio assim que Nelson Sargento foi internado. Desde quinta-feira da semana passada nosso mais ilustre “Sargento” lutava conta os sintomas da Covid-19. Mesmo tendo sido um dos primeiros a ser vacinado, sua idade avançada e a imunidade abalada pelo tratamento de câncer de próstata que fazia, desde 2005, acabaram comprometendo fatalmente.
Ao saber da trágica notícia Paulo César Feital nos disse que “A música brasileira cria um novo vazio, um buraco imenso. Nelson era um dos últimos representantes da monumental geração de cartola, Nelson Cavaquinho, Mano Décio e Silas de Oliveira. Com certeza o samba fica mais pobre, ele tinha um tamanho incomensurável. A música brasileira hoje está de luto e há de chorar muito de saudade. Infelizmente o mundo vai ficando mais carente, pobre de talentos e pessoas boas”.
O que serve de alento para nossa tristeza é saber que a herança artística de Nelson Sargento é imortal e que seu exemplo de vida ficará marcado em nossa história. Não restam dúvidas que o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, nossa cidade e o país como um todo, aplaudem de pé o espetáculo final desse astro que agora seguirá brilhando no céu, ao lado das mais belas estrelas.
Esse texto foi escrito por Rafael Mattoso em parceria com Valéria Pereira Silva, Assistente Social e Coordenadora de Extensão do Museu Nacional da UFRJ.
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