“Sua dramaturgia tem conceito, é dele, pessoal e intransferível.” Uma conversa com o diretor Gustavo Paso sobre David Mamet
Admirador da obra do americano David Mamet, o diretor Gustavo Paso está com duas peças do autor em cartaz na cidade, ambas no Poeirinha, em Botafogo: Oleanna, a primeira que ele leu, em 2009, e deflagrou seu interesse pela obra do dramaturgo, e Race. Em comum entre as duas (e também a praticamente toda a […]
Admirador da obra do americano David Mamet, o diretor Gustavo Paso está com duas peças do autor em cartaz na cidade, ambas no Poeirinha, em Botafogo: Oleanna, a primeira que ele leu, em 2009, e deflagrou seu interesse pela obra do dramaturgo, e Race. Em comum entre as duas (e também a praticamente toda a obra de Mamet), como o próprio Paso diz, está a disputa pelo poder. Em Oleanna, o enredo mostra o conflito entre uma aluna (Luciana Fávero) e seu professor (Fernando Vieira). Depois de um encontro entre os dois, no qual a aluna reclama por não entender a matéria, a situação evolui perigosamente para uma acusação de assédio sexual. Já em Race, o bilionário Charles (Yashar Zambuzzi), réu em um julgamento por estupro, procura advogados para defendê-lo. O acusado é branco e a vítima, negra, assim como o são, respectivamente, Jack (Gustavo Falcão) e T.J. (Luciano Quirino). Os dois são sócios no escritório que tentará inocentá-lo, para indignação de Susan (Heloisa Jorge), advogada idealista — e negra — que trabalha com eles.
Em conversa com o blog, Paso falou sobre sua relação com a obra de Mamet. Confira:
Quando e como foi o seu primeiro contato com a obra do Mamet, ainda como leitor ou espectador, antes de encená-lo?
A primeira peça do Mamet que li foi exatamente Oleanna, em 2009. Realizo periodicamente pesquisa de textos e, naquele ano, esbarrei com uma sinopse que me deixou imensamente curioso. Quando li o texto, o impacto artístico veio primeiro que o gosto pela história… Oleanna passou a ser o texto que mais queria dirigir até então. Um presente para um diretor que preza estética dramatúrgica. Fiquei completamente mobilizado pela contemporaneidade e a técnica de seu textoA estética da fragmentação em seu estado puro, realmente um presente para atores e direção. Realmente, a provocação técnica foi a primeira que me mobilizou.
Na medida em que é possível sintetizar uma obra, como você definiria a dramaturgia do Mamet? Quais são seus temas, o que há em comum entre suas histórias?
A dramaturgia de Mamet é uma ode as relações humanas contemporâneas. O que há de mais comum nelas é o que há de mais comum no nosso dia a dia: disputa pelo poder!
Do ponto de vista da direção, há algum desafio específico em encenar uma peça de Mamet?
São dois desafios. O primeiro é daqueles bem sofridos: conseguir derrubar o caminho psicológico que o ator brasileiro acredita ser importante para se contar uma história. O outro, e esse bem mais gostoso, não tomar partido em nenhum momento das questões dos personagens, um desafio diário defender opiniões e ao mesmo tempo não considerá-las.
Em um livro lançado não faz muito tempo no Brasil, chamado Teatro, Mamet faz uma série de afirmações polêmicas, como, por exemplo, que ensaios são inúteis. Como você vê isso?
Como ele levanta uma peça? Não é por telefone! Realmente, acho que essa afirmação não me interessa, a menos que se apresente outra forma de se fazer teatro. Ele desenvolve teorias que nunca serão aplicadas para defender suas ideias e afirmar certos conceitos. A proposito da sua nova peça na Broadway, o Al Pacino declarou que só quer fazer textos do Mamet. Estamos falando de um dos mais considerados autores e roteiristas dos Estados Unidos.
Em outra das suas afirmações no mesmo livro, ele diz que bons atores trabalham melhor sem a interferência de um diretor, chegando praticamente a pregar a inutilidade da direção. O que você pensa a respeito?
“Atuar não é uma arte; é, portanto incorreto se falar do ator como um artista.” Gordon Craig escreveu seu conceito de Supermarionete em 1907, querendo acabar com os atores substituindo-os por marionetes: “o ator é possuído pela emoção, apodera-se de seus membros, movendo-os à revelia de sua vontade.” O diretor não precisa dos atores da mesma forma que os atores não precisam do diretor… Talvez no mundo das ideias. Acho que um grupo de atores pode se autodirigir e que um diretor, se utilizando de bonecos, pode montar seu espetáculo sem erros humanos. Mas que graça tem? Onde está o tesão da relação entre artistas? Diretor e ator, quando caminham juntos, não há nada mais belo. A arte deve pensar cada vez mais em harmonia, não em destituição, separação.
Como você vê a obra teatral do Mamet em comparação à obra cinematográfica?
A cinematografia mais importante dele está nos roteiros, alguns imensamente famosos e premiados. Acho que a sua dramaturgia tem conceito, é dele, pessoal e intransferível! Quando (o dramaturgo Harold) Pinter morreu, muitos críticos afirmaram que ele passava a ser o herdeiro do que há de melhor na dramaturgia da fragmentação. Mas não é de hoje que ele é considerado um dos grandes roteiristas americanos. Realmente sou adepto de seus textos teatrais.
O que o atraiu em Oleanna para que você a montasse?
Oleanna, como disse, foi a primeira peça que li do Mamet. Então, comecei a conhecer sua obra por ela. Com certeza a melhor, pois depois de Oleanna procurei ler tudo dele. O desejo de montar a peça vem do meu compromisso em levar grandes textos para o público, textos que dizem alguma coisa. Realmente o que mais me atrai em Mamet é o nível de suas ideias e de seus diálogos, como ele defende um conceito com maestria e na cena seguinte o destrói com de forma não menos brilhante. Oleanna é um clássico! Com certeza um dos melhores textos que já dirigi.
E sobre Race, que motivos levaram à escolha para montar a peça?
Sair da zona de conforto, sempre! Um texto dificílimo de se dirigir, principalmente com a estética que venho desenvolvendo: crua, elegante, sem subterfúgios que só criam ruídos entre espetáculo e plateia. Mas o que mais me moveu mesmo foi tratar de um assunto delicado e que eu mesmo sabia tao pouco: racismo. Mudei muito nos últimos meses como pessoa. Hoje defendo as cotas nas universidades brasileiras, entre muitos outros conceitos que essa peça e o convívio direto, emocional com o elenco, me trouxe. Preconceito é uma crença sem conhecimento de causa.
Você ainda montará uma terceira peça do Mamet, certo? O que pode nos dizer sobre ela?
O projeto inicial é de levarmos ao publico brasileiro essa Trilogia Mamet. Há, inclusive, nesse projeto a intenção de viajarmos pelo Brasil com as três peças juntas! E a terceira, sempre com o poder como protagonista, coloca em confronto arte versus entretenimento. Speed-The-Plow (traduzida por nós como Hollywood) traz dois ambiciosos produtores de cinema atras de um blockbuster, e como em toda sua obra, uma mulher que consegue desestabilizar paradigmas e muda o projeto ambicioso dos caras da indústria. Um deles se vê seduzido em levar para as telonas uma obra contundente, que realmente pode mudar a vida do ser humano. A conclusão é um espelho do que vemos hoje em dia nas TVs e cinemas. E no Brasil, onde quem decide o que vai ser visto pelos brasileiros é um diretor de marketing que só deseja vender produtos… A peça fala deste problema, mais um da sociedade brasileira. Mamet é realmente um autor que tem muito pra falar, por isso não sei se vou parar em apenas três peças.