Elas no comando: chefs cariocas ganham espaço e desafiam o machismo
Nova geração à frente de cozinhas premiadas vem roubando a cena com histórias de superação, talento e resistência em um setor ainda dominado por homens

Em 1998, o jornal New York Times cometeu um ato falho ao noticiar que o chef Alain Ducasse, sucessor de Paul Bocuse (1926-2018) na linhagem masculina da gastronomia francesa, era o primeiro a amealhar seis estrelas do Guia Michelin, divididas em dois endereços. No entanto, 65 anos antes tal feito já havia sido conquistado, e por uma mulher: Eugénie Brazier (1895-1977) alcançou a vitória dupla em 1933, à frente de duas unidades do La Mère Brazier. Eugénie era mãe solteira e trabalhou em casas de famílias até tornar-se chef laureada. Pois alguns dos “leões” que a mãe da culinária francesa degolou estão vivos até hoje. Menos de 10% dos restaurantes condecorados pelo famoso guia são comandados por mulheres. “Somos mais resilientes. Quando entrei no Cipriani, éramos duas na cozinha e, em seis anos, o número quintuplicou”, conta Julia Lottus, 37 anos, hoje brilhando no Sult, em Botafogo, onde um quarteto fantástico de jovens chefs se encontrou, a convite de VEJA RIO, para uma sincera conversa sobre a presença feminina na linha de frente de estabelecimentos premiados. Degustando, entre taças de vinho, o crudo de vieiras do menu de Julia Lottus, completaram a mesa Roberta Antonia, Aline Sasaqui e Julia Guimarães.

Elas afirmam em uníssono: não é fácil a vida de quem precisa provar todos os dias que é capaz de tomar decisões entre os fogões, mesmo entregando alta performance. Esse traço cruel, no entanto, fortalece talentos femininos. “Se uma menina chora ao falhar no serviço, no dia seguinte ela chega mais cedo para refazer, enquanto um homem tira o avental e vai embora reclamando”, destaca Julia Guimarães, 32. Após um tempo na The Slow Bakery, ela voltou à chefia executiva de confeitaria e outras operações de Babbo Osteria, Jurubeba e a futura Francese Brasserie, ao lado de Elia Schramm.

Chef do consagrado bar Botica, com passagem pelo estrelado Oro, de Felipe Bronze, Aline Sasaqui, 32 anos, vai além: “Percebo que, muitas vezes, a nova geração masculina erra por não respeitar processos. Mulheres estão mais dispostas a percorrer os caminhos, sabendo que serão longos e com menos reconhecimento.” A legitimação através de prêmios de destaque internacional também pipocou durante o bate-papo.

Instituído em 2002, o The World’s 50 Best Restaurants incluiu a categoria melhor chef feminina nove anos depois. Vencedora em 2016, a francesa Dominique Crenn, primeira a obter três estrelas Michelin nos Estados Unidos, disse à época que não encarava a mudança como positiva. As cariocas concordam com o raciocínio. “É como se as mulheres não pudessem nem concorrer ao posto principal, que fica sempre com os homens. Parece cota”, observa Roberta Antonia, que chefiou Pope e Suru Bar, chegou à aclamada Casa 201, detentora de uma estrela, e pilota agora o bistrô-bar Balcão 201.

Os diferentes tratamentos entre os gêneros aparecem ainda, segundo elas, nos ecos nefastos da temida frase “lugar de mulher é na cozinha”, em referência ao âmbito doméstico, enquanto homens são celebrados por uma pretensa “comida afetiva”. “É problemático atribuir essa ternura aos homens, porque a expressão se refere à comida caseira das mães e avós”, observa Aline. “Vejo isso como uma piada”, completa Julia Lottus.
Assim como os laços afetivos, o vigor e a resistência perpassam a história das principais personagens do setor, que vão da citada Eugénie à americana Alice Waters, criadora do conceito “farm to table”, no final dos anos 1960, que se tornou mandamento nos mais reverenciados restaurantes do mundo. Alice bradava contra a Guerra do Vietnã enquanto gestava o Chez Panisse, até hoje de portas abertas na Califórnia. As mulheres também abriram caminho para a democratização das panelas através da televisão, ponto em que é impossível prescindir de Julia Child (1912-2004), considerada por Anthony Bourdain (1956-2018) “a figura mais influente da história da culinária americana.” Outro ótimo exemplo é a brasileira Rita Lobo, há 25 anos na telinha, passando ao largo de reality shows que glamorizam, de forma exagerada, a profissão. “Gastronomia não é pratinho bonito para fazer foto. Tem que respeitar as bases”, conclui Aline Sasaqui. Combinando talento, bagagem, determinação e pé no chão, a nova geração de chefs mulheres cariocas tem um caminho brilhante pela frente.