Tempo esgotado

Basta mergulhar nas águas turvas e ver o lixo espalhado pelo fundo do mar para constatar que será impossível entregar a Baía de Guanabara limpa até a Olimpíada

Por Bruna Talarico e Ernesto Neves
Atualizado em 5 jun 2017, 13h58 - Publicado em 19 jun 2013, 18h00
Foto: Rodrigo Thome/2olhares.com
Foto: Rodrigo Thome/2olhares.com (Redação Veja rio/)
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Mergulhar nas águas escuras da Baía de Guanabara dá medo, não há vergonha em admitir. A 6 metros de profundidade, bem em frente à mureta onde os clientes do Bar Urca bebem sua cervejinha, o silêncio só é cortado pelo som das bolhas da própria expiração e pelos murmúrios que denotam o nojo de tocar no fundo. O cenário iluminado por um refletor é apocalíptico: colinas de lama marrom, densa e gosmenta, se estendem em um relevo contínuo a perder de vista. Trata-se de matéria orgânica em putrefação, proveniente do contínuo despejo de lixo e esgoto nas águas. Sobre os morrinhos, está disposta toda sorte de objetos. Tênis, jarras, pneus, embalagens de plástico e de alumínio, preservativos, pincéis, tapetes, roupas, correntes e brinquedos, tudo facilmente identificável. Mas há também aqueles em decomposição, que se desfazem ao toque. Qualquer movimento mais abrupto é suficiente para que a matéria orgânica se desgarre da espessa camada de lodo e envolva tudo o que está ao redor em uma nuvem de partículas. Aí sim a situação fica realmente assustadora, e a visibilidade simplesmente deixa de existir na água imunda.

Veja o depoimento Bruna Talarico, repórter que mergulhou na Baía de Guanabára

O panorama desolador constatado pelos repórteres de VEJA RIO é surpreendente para quem está acostumado a ver o belo cenário de fora, mas já é esperado por quem navega ali. Em maio, uma regata ecológica organizada pela Escola Naval na Marina da Glória comprovou o estado mais que crítico das águas. Em duas horas, os participantes recolheram nada menos que 220 quilos de lixo que flutuava na superfície, no mesmo local em que serão realizadas as provas de vela da Olimpíada de 2016. A podridão é tal que já fez soar o alerta vermelho entre os esportistas e os organizadores dos Jogos. No dossiê de candidatura do Rio a cidade-sede, os governos federal, estadual e municipal prometeram que tratariam cerca de 80% dos 18?000 litros de esgoto lançados por segundo na baía. Faltando três anos para o acendimento da pira olímpica, é consenso entre especialistas que esse índice não será alcançado. “Em áreas densamente povoadas no entorno, como Maré e São Gonçalo, não existe saneamento básico nem coleta de lixo”, diz Paulo Cesar Rosman, professor de engenharia oceânica da Coppe-UFRJ. “Organizar esse caos urbano em três anos é impossível”, constata.

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Na triste realidade da Guanabara, as estatísticas comprovam o que o olfato dos cariocas percebe de longe. Dois terços dos dejetos produzidos por mais de 10 milhões de pessoas são despejados ali sem nenhum tratamento. Como resultado, as 53 praias em seu perímetro são impróprias para o banho devido aos elevados índices de coliformes fecais. Em um dos pontos mais críticos, próximo à Ilha do Governador, 70% das amostras coletadas no último ano indicavam uma quantidade de fezes quase cinco vezes maior que a aceitável. Outro problema grave é o lixo. Cinquenta e cinco rios, córregos e canais fétidos que cortam os oito municípios do entorno transportam a cada dia aproximadamente 1?000 toneladas de detritos ? um combinado que vai de embalagens descartáveis a sofás, eletrodomésticos e partes de automóveis. Além do inegável impacto ambiental, destroços e objetos flutuando na baía são particularmente perigosos para velejadores. “Com o barco a 50 quilômetros por hora, um pedaço de madeira pode provocar grave acidente”, afirma o iatista Ricardo Winicki, que participou de quatro olimpíadas. “Jamais vi um local de competição poluído como aqui. Na Europa e nos Estados Unidos, as águas são tão translúcidas que é possível enxergar até o fundo”, compara.

As primeiras iniciativas para tentar limpar um de nossos mais espetaculares cartões-postais remontam à última década do século passado. Há 21 anos, o anúncio da faxina foi feito com pompa durante a Conferência de Meio Ambiente das Nações Unidas, a Eco 92. O controle sobre fábricas poluidoras aumentou, mas o projeto que consumiu mais de 1,5 bilhão de reais ao longo de seis governos fracassou vergonhosamente no que diz respeito ao controle do esgoto. Entre 1994 e 2006, ano de seu encerramento, foram construídas seis centrais de tratamento, que, no entanto, ainda hoje operam em padrões muito inferiores a sua capacidade. A rede de tubulações de 1?248 quilômetros que deveria ser implantada para transportar os resíduos até as estações foi deixada pela metade. Desde 2007, está em andamento um novo programa orçado em 1,3 bilhão de reais para terminar o que se abandonou pelo caminho. Mas o ritmo segue lento. Em Duque de Caxias, onde há três anos não existia rede de esgoto, apenas 2% do previsto foi efetivamente implantado. As dez ecobarreiras instaladas até hoje na bacia hidrográfica da baía retiraram em 2012 pouco mais de 4?000 toneladas de lixo, o equivalente ao volume lançado pela população local em apenas quatro dias. “O passivo que encontramos é enorme, e estamos correndo contra o tempo para evitar um vexame internacional”, justifica o secretário estadual de Ambiente, Carlos Minc. Na atual velocidade, será muito difícil não passarmos vergonha.

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Diante de tal cenário, começam a ser adotadas medidas paliativas que, embora tenham o objetivo de mitigar o problema, estão longe de ser uma solução eficaz. Como não há mais tempo para construir uma rede de saneamento abrangente, foi iniciada a implantação de cinco Unidades de Tratamento de Rios (UTRs), ao custo de 40 milhões de reais cada uma. As estações serão construídas na foz de canais poluídos e removerão até 80% da imundície orgânica da água com o uso de aditivos químicos. Dessa nova leva, a primeira, no Rio Irajá, fica pronta em novembro e possui capacidade para tratar 1?750 litros de efluentes por segundo. Pelos cálculos do governo, a unidade deve reduzir em 12% a quantidade de esgoto que emporcalha a baía. Em São Paulo, a mesma técnica foi testada sem sucesso. Lá, o governo estadual injetou 160 milhões de reais para limpar o Rio Pinheiros, mas verificou que, mesmo após o processo, a água permanecia contaminada por outros tipos de poluente. “É uma solução transitória. No dia em que conseguirmos implantar o sistema de coleta, poderemos desativar as UTRs”, diz Gelson Serva, coordenador do programa de saneamento. Outro recurso emergencial que começa a ser utilizado até o fim do ano é uma frota com uma dezena de barcos que recolherão os detritos flutuantes. Serão os navios-lixeiros. Pois é. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), que, em visita ao Rio há quase oitenta anos, disse detestar a Baía de Guanabara, teria hoje razões bem concretas para repetir tal declaração.

É bem possível que, até a realização dos Jogos, a operação implantada de afogadilho consiga melhorar a situação periclitante de hoje. No entanto, a abordagem cosmética apenas reforça a frustração de deixar passar mais uma excelente oportunidade de atacar o problema, que é a falta de saneamento básico no Grande Rio, pela raiz. Outras metrópoles se saíram bem ao combater a poluição de suas águas. Maior cidade australiana, Sydney é um caso emblemático de como aproveitar o embalo dos Jogos Olímpicos para se livrar da sujeira das águas de sua baía. Lá, o problema eram os resíduos químicos lançados durante várias décadas por empresas instaladas nos subúrbios e o lixo trazido pelo sistema de escoamento pluvial para a baía e a região do porto. Com um investimento de 1,6 bilhão de dólares, foi realizada durante quatro anos uma gigantesca operação de limpeza para retirada das camadas do solo contaminado do fundo do mar e construído um complexo sistema de reservatórios e estações de tratamento. Um ano antes da chegada dos atletas, os resultados já eram visíveis. É um cenário que dificilmente se verá aqui. “Para falar em recuperação, é preciso atacar o lançamento de esgoto e lixo. Não existe nenhuma possibilidade de mudança se isso não for feito”, afirma David Zee, oceanógrafo e professor da Uerj. O descaso torna-se ainda mais triste quando se leva em conta que há pontos onde a vida marinha resiste de forma comovente. Mesmo nas asquerosas dunas subaquáticas de lodo visitadas por VEJA RIO, é possível ver um ou outro peixinho nadando na sujeira. Um sinal de que nossa baía ainda pode voltar à vida.

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