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Atriz e escritora Maria Ribeiro estreia como cronista da Veja Rio

No texto de estreia, atriz fala sobre uma conturbada relação: "Foi então, no meio da nossa maior crise, que eu percebi que ainda te amo"

Por Maria Ribeiro
Atualizado em 13 fev 2020, 11h51 - Publicado em 5 fev 2020, 13h06
Maria Ribeiro: livro e documentário saindo do forno
Maria Ribeiro é a nova cronista da Veja Rio (Jorge Bispo/Divulgação)
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Eu e você

Era Domingos, o Oliveira — pra mim, o mais carioca dos cariocas —, o detentor da mais filosófica tese a respeito das propriedades revolucionárias das madrugadas. Segundo ele, só nelas, com seu elenco específico e luzes gentis, livres da opressão do dia e da escravidão do horário comercial (e de preferência na companhia de algumas doses de uísque), poderiam surgir encontros de Amor Verdadeiro, do tipo que se escreve com maiúsculas e vira poesia. Verdade ou não, o fato é que o relógio caminhava pra 4 da matina quando te vi pela primeira vez. Era começo de novembro, e o cenário, no alto da Gávea, completava a direção de arte perfeita, Eros e Deus assinando juntos: Mata Atlântica “a milhão”, sabiá-laranjeira, primavera querendo ser verão, uma promessa de Tom Jobim ao piano a poucos quilômetros dali. E eu e você, muito prazer.

Quer dizer, muito prazer, não. Que não foi só prazer. Que eu também chorei. E chorei assim, logo de cara, como quem se apresenta do avesso. Mas mesmo com a franqueza a dez, e o verniz a zero — ou talvez exatamente por isso —, eu creio ter sido capaz de entender, ainda que de forma intuitiva (e mesmo no nosso dia número 1), que nós dois, ali, naquele dia, no meio daquelas árvores… a gente não tinha como não ser um do outro. Aliás, a gente já era, mesmo antes. Tanto que estamos aqui, anos depois, e seguimos sendo. Seguimos sendo tanto que mesmo agora, nesta fase tão difícil, nós dois nos estranhando tanto — e eu cheia de Proust pra continuar gostando de você —, te faço esse convite pra dançar.

A teimosia é um vestido que sempre me coube com algum conforto, portanto não há de ser neste mal começado 2020 que eu vou abrir mão de você. Nosso dia a dia não está fácil, as brigas têm deixado mágoas rodrigueanas, e quase tudo em você passou a me irritar, mas é exatamente por isso que vou ficar: porque nunca te odiei tanto, e não posso ir embora desse jeito. Tive esse insight com o último filme do Noah Baumbach, História de um Casamento, quando um casal, prestes a se divorciar, escreve, pra ler em voz alta em uma terapia de casal, justamente o que, anos antes, os fez se apaixonar um pelo outro, a ponto de juntar os iPhones, ter filho e enfrentar o desafio de nunca ver o próximo episódio de uma série antes que o outro veja também.

Vamos lá: vou começar pelo Jardim Botânico. Talvez seja de fato minha memória mais idílica dos primeiros anos ao teu lado: as vitórias-régias, o pau-­brasil, e até os passos que separavam nossa casa, na Rua Joaquim Campos Porto, do portão da Pacheco Leão. Ali eu te amei como se todo aquele verde nunca fosse acabar, uma inocência de comprar livro junto e mudar sobrenome. As casinhas do Horto ainda não tinham sido descobertas pelos restaurantes, e a Padaria Século XX reinava absoluta na esquina da Von Martius, programa que era seguido por nossa clássica esticada até a pracinha da Peri — cujo nome até hoje não sei pronunciar —, um rolê que podia durar a tarde toda…

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Anos depois, fomos cooptados pelo Leblon, e pegamos o último ano daquela boemia romântica do Real Astoria e da Pizzaria Guanabara, eu sonhando ao mesmo tempo com o existencialismo do Sartre e o pão doce da Rio-Lisboa. Vivemos o Baixo Gávea, o Estação Botafogo, o Bar Lagoa, o Posto Nove, a PUC, o Circo Voador, a Fundição Progresso, o Ballroom, o Canecão, a mureta da Urca, Santa Teresa, o Albamar, o circuito Correios e CCBB, e recentemente nada nos fez mais felizes do que o festival de pipas do lado esquerdo de São Conrado e o polvo da Adega Pérola depois de um show no Theatro NET Rio.

Mas esse recentemente começou a ficar cada vez mais longe, e o teu desamor foi me empurrando pra outro DDD, onde eu ensaiei começar tudo de novo, você numa caixa de passado que eu custaria a ter coragem de ver. As malas estavam prontas e o coração ainda rasgado quando o gosto da água começou a mudar. A água, nosso bem mais simbólico, nossa capacidade de submergir e flutuar, a principal composição do nosso corpo, a única possibilidade de estar no mundo, o recomeço diário do escovar os dentes e sentir o corpo limpo. A água! E foi então, no meio da nossa maior crise, que eu percebi, entre lágrimas proustianas e reservas de garrafas Minalba, que ainda te amo, e que vou lutar do teu lado, não importam a sede, o calor ou a violência. Passei então na Rua João Borges, onde te vi pela primeira vez, e, assim como naquele dia, dia do meu nascimento, chorei olhando pra Mata Atlântica, torcendo pra ouvir, quem sabe direto das nuvens, o piano do Tom. Toca pra gente, Tom? É que o Rio e eu vamos tentar de novo, e se você puder dar uma força…

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